sexta-feira, 24 de julho de 2009

Uma Nova Ameaça à Circulação dos Livros?

Esta semana a imprensa brasileira repercutiu uma notícia sobre a Amazon e seu aparelho leitor para livros digitais, o Kindle. A notícia, o fato, foi o seguinte: a Amazon descobriu que dois livros digitais vendidos através de seu site, "A Revolução dos Bichos" e "1984" (as edições brasileiras são atualmente da Cia das Letras), ambos de George Orwell, eram piratas, isto é, a empresa que os disponibilizou para venda no site da Amazon não detinha os direitos para tal.

Que fez a Amazon, então? Segundo o comunicado oficial, parcialmente reproduzido na Ilustrada da Folha de São Paulo no dia 22.07.2009, "quando fomos notificados pelos donos dos direitos, nós removemos as cópias do nosso sistema e dos dispositivos dos clientes e os ressarcimos."

Algumas questões importantes se impõem para discussão:

1-a Amazon, ao não checar a procedência dos produtos que disponibiliza para venda, acabou por vender produtos piratas. Isto pode ser considerado como receptação de mercadoria roubada, tendo em vista que os direitos autorais não foram respeitados. Por analogia, é o mesmo que lojas de reprodução xerográfica venderem cópias de livros em xerox nas faculdades. Ainda no comunicado oficial, a Amazon reconhece o erro e diz que "... nós estamos mudando nossos sistemas de modo que, no futuro, não vamos mais remover livros dos dispositivos de clientes em circunstâncias como estas." Atenção para a expressão "em circunstâncias como estas". Quer dizer que, em outras circunstâncias, podem vir a deletá-los, é isso? E em quais circunstâncias?

2-e o que fez a Amazon para corrigir o erro da venda de produtos ilegais? Sem prévio aviso a nenhum dos clientes e com o apertar de algumas teclas, remove, deleta, e à distância, as cópias digitais dos aparelhos Kindle, que são propriedade privada das pessoas que os compraram, tanto as cópias quanto os aparelhos. Pelo menos era o que se imaginava. Essa possibilidade de deletar cópias digitais nos aparelhos Kindle não era do conhecimento de ninguém. Uma pessoa comprou um produto, a cópia digital, mas, na prática, não é a dona dele. Isto vai gerar muita discussão na nossa sociedade de consumo e vai por em cheque a percepção de valor atribuída ao livro digital em comparação com o exemplar físico. Mais uma analogia: em 2007 a Justiça brasileira determinou que a editora Planeta recolhesse das livrarias e do seu estoque os exemplares da biografia de Roberto Carlos escrita por Paulo Cesar de Araujo. Entretanto, ninguém foi à casa das pessoas que já tinham comprado o livro e o pegou, com ou sem autorização, nem se exigiu que as pessoas os devolvessem.

3-atualmente a Amazon domina a venda de e-books. Porém, utiliza uma estratégia que não é boa para a concorrência e torna as editoras dependentes, pois seus e-books podem ser lidos no Kindle, que ela desenvolveu e vende. Nesta mesma semana a Barnes & Noble , maior rede de livrarias físicas do mundo, anunciou que a partir do dia 20.07.2009, passou a ser também a maior livraria de e-books com uma oferta inicial de 700 mil títulos; destes, 500 mil podem ser lidos gratuitamente, graças a uma parceria com o Google, pois são de domínio público. Os outros 200 mil são vendidos ao preço de U$ 9,99. Mas, o mais importante é que, ao contrário da Amazon, que obriga a compra do seu leitor, o Kindle, para a leitura dos livros, a Barnes & Noble permitirá que os e-books sejam lidos em vários dispositivos, como no computador ou em smartphones, como o iPhone e o Blackberry. Este é um ponto chave para as editoras pois, se se sujeitarem a que os e-books só possam ser lidos em determinados aparelhos, perderão muito nas negociações futuras. A hora de definir a independência editorial é agora enquanto os e-books ainda não são uma parcela importante do faturamento das editoras. Imagine se, para ouvir um CD ou ver/ouvir um DVD você precisasse de um aparelho específico para cada fornecedor desses conteúdos? Quantos aparelhos teríamos que ter?

4-mas, o ponto mais importante, o crucial, é que a Amazon, ao ter a possibilidade de deletar à distância o conteúdo de um livro digital anteriormente vendido, abre a brecha para aprimorar a CENSURA à circulação das ideias. No caso será uma censura a posteriori. Explico-me melhor. A história está repleta de exemplos de apreensão e queima de livros (físicos) por regimes e governos autoritários. Estão aí os exemplos da queima de livros na Alemanha nazista, ou a proibição do livro "Os Versos Satânicos", de Salman Rusdie pelo regime dos aiatolás do Irã. No Brasil mesmo, durante o regime militar, ocorreu apreensão de livros, desde O Capital, de Marx, até A Capital, de Eça de Queiróz. Essas ações dependeram do emprego de força física, do levantamento de informações para saber quem tinha os livros e onde estavam, de ir no local e recolhê-los etc, etc. E mesmo, assim, sempre seria impossível recolher e destruir todos os exemplares. Agora, imagine o mundo daqui a uns cem anos, vá lá, onde os e-books já serão muito significativos - se não a maior parte do suporte para livros -, imagine a possibilidade de um governo ou uma empresa privada resolver que determinado livro não deverá mais ser lido? Com um simples apertar de teclas, as ideias que possam incomodar ou vir a incomodar qualquer pensamento autoritário de plantão serão fácil, e rapidamente, eliminadas. Essa possibilidade, desnudada mesmo que sem querer pela Amazon, caso não seja coibida pela sociedade democrática, transformar-se-á no sonho de consumo de qualquer pretendente a ditador.

Esta história dos livros deletados ainda tem um lado bem irônico, pois ocorreu, justamente, com os livros de George Orwell, nos quais ele solta o verbo contra regimes autoritários instituídos (A Revolução dos Bichos), e contra os que, já visionariamente, ele achava que podiam vir a ser instituídos (1984).








Fontes de pesquisa:

Folha de São Paulo, Ilustrada, dia 22.07.2009

2 comentários:

Vania Lacerda disse...

Olá, Jaime! Olha, essa coisa da gente seguir um blog tem seus "contras"... Asssim: a criatura recebe no email suas postagens, acha legal, até pensa em comentar, mas está lendo os emails, e deixa o comentário pra depois. E o depois pra mais depois...
Bom, vou romper esse ciclo hoje, apenas pra dizer que seus comentários são sempre muito interessantes e pertinentes. Quanto ao kindle, etc, etc...bom, acho que alguns tipos de livro fisico vão entrar rapidinho na lista das "espécies ameaçadas de extinção". Um exemplo, o livro didático ou técnico. Qualquer estudante de Direito vai achar muito legal ter todos aqueles códigos numa única peça que tem o tamanho aproximado de um livro pequeno. E quando saírem novos códigos, ele os compra com alguns clicks, provavelmente por bem menos do que pagaria na livraria, pelo livro físico.
Fico imaginando que aquela mochila imensa, pesada, com váaarios livros e cadernos que minha filha de 12 anos leva para a escola todos os dias poderia muito bem ser substituída, com ganhos, por um "kindolzinho" desse aí...
Mas teremos mercado para o livro físico, é claro. O tamanho desse mercado, e que caracteristicas ele terá - essa é a questão.
Abraço grande, Jaime...

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Texto fantástico!

Reflexões muito interessantes.

Parabéns pelo blog.

Pedro Antônio

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