sábado, 27 de junho de 2009

Indicações # 3: Ouvintes Alemães


Ouvintes Alemães! discursos radiofônicos contra Hitler (1940-1945) traz a intensa participação, quase que mensal, do mais importante escritor alemão do séc XX, Thomas Mann, nos eventos da Segunda Guerra Mundial. Filho de mãe brasileira e pai alemão, Thomas Mann nasceu em 06/06/1875 na Alemanha e faleceu em 12/08/1955, na Suíça.

Mas, o que levou a BBC a convidar o alemão Thomas Mann, já famoso pelos livros Os Buddenbrooks (1901), Morte em Veneza (1912), A Montanha Mágica (1924) e pelo Nobel de Literatura ganho em 1929, a participar da estratégia de contrapropaganda durante a Segunda Guerra Mundial, realizada pelo governo inglês chefiado pelo Primeiro Ministro Winston Churchill? Uma pequena cronologia pode ajudar a contextualizar o convite e essa participação:

1918 Thomas Mann publica Considerações de um Apolítico, em que defende ideias conservadoras e monarquistas;
1922, em 15 de outubro, discursa “Da República Alemã” (Von Deutscher Republik) na Sala Beethoven em Berlin, onde defende a democracia da República de Weimar (1919-1933);
1930, outubro, Thomas Mann fez em Berlim um discurso, apelando "à razão alemã" e à burguesia e às forças socialistas para que rejeitassem o fanatismo fascista. Suas palavras foram interrrompidas por tumultos organizados pela polícia nazista e o escritor foi obrigado a abandonar o recinto pela porta dos fundos;
1933, em 30 de janeiro, Hitler assume o poder na Alemanha; Thomas Mann estava em viagem fazendo palestras na Holanda, Bélgica e França. Decide não voltar para Berlim e se auto-exila na Suíça;
1936, 2 de dezembro, o jornal nazista Observador Popular (Volkischer Beobachter) publica as listas de expatriados, isto é, pessoas de quem foi retirada a cidadania alemã pelo Reich; Thomas Mann está na 7a lista.
1937, janeiro, O Ministério de Esclarecimento Popular e Propaganda do regime nazista anunciava: "Thomas Mann deve ser apagado da memória de todos os alemães, por não ser digno de carregar o nome de alemão".
1938, exila-se nos Estados Unidos;
1939, 1 de setembro, início oficial da Segunda Guerra Mundial.

É assim, portanto, que (nas palavras de Thomas Mann) "No outono de 1940, a British Broadcasting Corporation - BBC - entrou em contato comigo e me convidou para transmitir regularmente a meus compatriotas pequenos discursos em que eu deveria comentar os acontecimentos da guerra e buscar influenciar o público alemão na direção das convicções que tantas vezes expressei." pág 7.

Deste convite resultaram 58 discursos escritos por Thomas Mann; o primeiro foi ao ar em outubro de 1940 e o último em 8 de novembro de 1945 e, em todos eles, o início foi sempre o mesmo Deutsche Hörer! (Ouvintes Alemães!). Nestes discursos tem-se a escrita de leitura agradável, a concisão (dispunha somente de 8 minutos), a clareza das ideias e a grande capacidade de análise dos acontecimentos. Era praticamente uma análise "online" do que acontecia na Europa. Além disso, em muitos desses discursos, Thomas Mann chega a ser visionário com relação ao que vai acontecer após a derrota de Hitler no que, aliás, acreditava piamente.

Mas, como era o processo de transmissão desses discursos? A transmissão era feita de Londres, "em ondas longas e, portanto, poderiam ser ouvidas pelo único tipo de rádio que o povo alemão tinha permissão de ter." pág 7. Porém, se Thomas Mann estava exilado nos Estados Unidos, como isso era feito? É o próprio que explica:
"No início, as transmissões eram realizadas da seguinte maneira: eu telegrafava meus textos para Londres, onde eram lidos por um funcionário da BBC que falasse alemão. Por minha sugestão, um método mais complicado, porém mais direto e, portanto, mais simpático, foi logo adotado. Tudo o que tenho agora a dizer é gravado no Recording Department na NBC, em Los Angeles; a gravação é enviada a Nova York por via aérea e então transferida, por telefone, para outra gravação em Londres, onde é executada diante do microfone. Dessa forma, não apenas minhas palavras, mas minha própria voz são ouvidas por aqueles que se atrevem à escuta clandestina." pág 8.

Não achei referências quanto aos níveis de audiência das transmissões mas Thomas Mann comenta no prefácio à primera edição do livro que "o número de pessoas que escuta é maior do que se poderia esperar, (...) A prova mais cabal de que é assim - uma prova ao mesmo tempo divertida e asquerosa - é dada pelo fato de que meu próprio Führer, em um discurso numa cervejaria em Munique, aludiu de forma inconfundível às minhas emissões e disse que eu era um desses que tentam incitar o povo alemão à revolução contra ele e seu sistema." pág 7-8

O primeiro discurso de 1940 começou assim:
"Ouvintes alemães!
É um escritor alemão que vos fala, um escritor que, assim como sua obra, foi proscrito pelos governos alemães, e cujos livros, mesmo que tratem daquilo que é mais alemão, de Goethe, por exemplo, só podem falar a povos estrangeiros e livres na língua deles, enquanto para vocês têm de permanecer mudos e desconhecidos. Minha obra retornará a vocês um dia, estou certo, mesmo que eu próprio não possa mais fazê-lo
." pág 15 (T. Mann não voltou a morar na Alemanha).

Segue uma seleção de trechos para dar a noção de como é bom este livro:

Novembro de 1940
"E o que deve ser e será o desfecho desta guerra é algo claro. (...) a defesa dos valores individuais nos limites das exigências da vida coletiva." pág 20

Fevereiro de 1941
"(...) o indivíduo Hitler, com sua insondável falsidade, sua reles crueldade e seu desejo de vingança, com seus constantes rugidos de ódio, seu estropiamento da língua alemã, seu fanatismo medíocre, sua ascese covarde e sua perversidade miserável, sua humanidade defeituosa que carece de qualquer traço de magnanimidade e de vida espiritual elevada, que o indivíduo Hitler, digo, é a mais repugnante figura sobre a qual jamais caiu a luz da história!" pág 31

Março de 1941 (discurso n.5), o próprio Thomas Mann passa a ler os discursos.
"Ouvintes alemães!
O que eu tinha para dizer a vocês de longe tinha sido feito até então por outras vozes. Desta vez, vocês ouvem minha própria voz
." pág 33

Maio de 1941
"A revolução de Hitler é pura fraude; ele não é nenhum revolucionário, mas apenas um bandido e um explorador da crise mundial, crise que deve levar os povos a um novo e mais alto grau de sua formação social e de sua maturidade. Os fundamentos da paz vindoura precisam ser a justiça e a liberdade, assim como a possibilidade de que todos tenham igual acesso aos bens do mundo, e o futuro pertence a uma comunidade de povos livres, livres mas responsáveis por sua comunidade e prontos a sacrificar a antiquada soberania nacional a essa responsabilidade." págs 41-42

Agosto de 1941
"Fará uma enorme diferença para o futuro se forem vocês mesmos, alemães, a eliminar o homem do terror, esse Hitler, (...)" pág 52

Setembro de 1941
"[alemães, vocês] ... deveriam pensar que a concepção de aniquilação dos povos e do extermínio das raças é uma ideia nazista - ela não é natural nas cabeças das democracias." pág 54

"(...) Himmler disse abertamente que vai exterminar a nação theca fisicamente, como um todo, se ela não se submeter sem resistência à raça de senhores (...)." pág 55

Novembro de 1941
"A contrapartida cristã dessas execuções em massa por gás são os ´dias de acasalamento´, em que soldados de licença são conduzidos a encontros animalescos com jovens da BDM (Bund Deustcher Mädchen - Associação das Mulheres Alemãs) para produzir bastardos do Estado que possam servir na próxima guerra. Pode um povo, uma juventude decair mais?" pág 62

Janeiro de 1942
"É extremamente difícil imaginar a convivência do povo alemão com os outros povos depois da guerra. Sempre houve guerras , e as nações que as empreenderam sempre causaram muitos danos umas às outras. Graças à memória curta das pessoas, isto foi sempre enterrado e rapidamente esquecido. Desta vez, será diferente. O que a Alemanha faz, o que inflige de desgraça, miséria, desespero, decadência, destruição moral e física à humanidade ao praticar a filosofia revolucionária da bestialidade é de uma tal medida, é tão revoltante e desesperadamente inesquecível, que não se pode prever como nosso povo poderá no futuro viver como igual entre iguais com os povos irmãos da Terra." pág 73

"Aqueles dentre vocês para quem meu nome ainda significa alguma coisa sabem bem que não sou nenhum revolucionário, nem homem de barricadas, nenhum instigador de atos sangrentos por natureza. Mas também conheço o suficiente das leis morais do mundo e sinto por elas respeito o bastante para dizer a vocês e anunciar com segurança: uma depuração, uma purificação e uma libertação devem e vão acontecer na Alemanha, tão radicais e tão determinadas que estejam à altura de atos criminosos nunca antes vistos no mundo. Devem e vão acontecer, digo eu, para que o grande povo alemão possa olhar a humanidade outra vez nos olhos e estender a mão para ela, com gestos livres, em sinal de reconciliação." pág 74

Maio de 1942
"A honra e a igualdade de direitos vão ter de esperar. A liberdade e a igualdade foram negadas e pisoteadas pela Alemanha por tempo demais para que possa exigi-las no primeiro dia do armistício. Uma longa quarentena de precaução e vigilância será inevitável. A Alemanha será ajudada economicamente, mas o poder militar terá de ser negado a um povo que por tanto tempo só pôde imaginar sua unificação com o mundo na forma de dominação desse mundo. A formação política interna da Alemanha será deixada aos próprios alemães, e a tarefa dos alemães, nesse sentido, assim como a prova de sua confiabilidade futura, será a de assumir a responsabilidade pela purificação de seu corpo social, que tem de ser profunda e não pode se limitar à extinção da peste nazista. Ela deve atingir toda a camada de homens que utilizaram o nazismo como instrumento para satisfazer sua sede de poder e cobiça, camada que não deve mais ser capaz de fazer da Alemanha o flagelo da humanidade." págs 91-92

Setembro de 1942
"(...) o Exército alemão (...) até ser derrotado, ele está loucamente empenhado no extermínio dos judeus. O gueto de Varsóvia, onde foram empilhados em pouco mais de vinte míseras ruas, 500 mil judeus da Polônia, da Áustria, da Tchecoslováquia e da Alemanha, não passa de um buraco de fome, peste e morte que exala cheiro de cadáver. Sessenta e cinco mil pessoas morreram lá em um ano, o ano passado. Segundo informações do governo polonês no exílio, a Gestapo já matou ou torturou até a morte um total de 700 mil judeus, dos quais 70 mil apenas na região de Minsk na Polônia. Vocês, alemães, sabiam disso? E o que acham?" (grifo meu) pág 106

Outubro de 1943
"É inacreditável (...) o que eles fizeram através das mãos dos filhos de vocês, através das mãos de vocês. É inacreditável, mas é verdade. Você que está me ouvindo conhece Maidnek, perto de Lublin, na Polônia, um campo de extermínio de Hitler? Não era um campo de concentração, mas um gigantesco estabelecimento de assassinato. Lá existe um grande prédio de pedra com uma chaminé de fábrica, o maior crematório do mundo. (...) Mais de meio milhão de europeus, homens, mulheres e crianças, foram envenenados com cloro e depois queimados, 1.400 por dia. A fábrica da morte funcionava dia e noite; suas chaminés nunca deixavam de soltar fumaça. (...) ossos humanos, barris de cal, encanamentos de gás e crematórios; além disso, as pilhas de roupas e sapatos tirados das vítimas, muitos sapatos pequenos, sapatos de criança, se é que vocês, compatriotas alemães, e vocês, mulheres alemãs, querem continuar ouvindo. De 15 de abril de 1942 a 15 de abril de 1944, apenas nesse dois estabelecimentos alemães [campos de Auschwitz e Birkenau] foram mortos 1.715.000 judeus. De onde tiro os números? Pois seus soldados faziam a contabilidade, com aquele senso de ordem alemão!" págs 191-192

"Só dei alguns exemplos do que vocês terão de encarar. (...) Alemães, vocês precisam saber disso." págs 192-193

Ouça aqui um dos discursos, na voz de Thomas Mann:
http://www.youtube.com/watch?v=25YNc5bX7xY


Fontes:


Sonia Dayan-Herzbrun. Thomas Mann: um escritor contra o nazismo
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31731997000100005&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

Rachel Gessat
http://www.dw-world.de/dw/article/0,,340994,00.html

Richard Miskolci
http://www.ufscar.br/richardmiskolci/paginas/academico/cientificos/eros_presidente.htm

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