sábado, 23 de janeiro de 2010

Zahar, Gato Sabido e o Livro Digital

A questão mais importante desta nova fase da comercialização do livro - o suporte digital - , é que ele vai garantir não só a existência da bibliodiversidade como também a sua ampliação. Por consequência garante-se, cada vez mais, a circulação das ideias por mais diversas e conflitantes que sejam, e por mais adeptos que tenham ou não.

Em termos históricos não é nenhuma novidade o surgimento de um novo suporte para a circulação das ideias e do conhecimento acumulado. A quebra de paradigma anterior aconteceu em meados do século XV quando Gutemberg, ao desenvolver a técnica da impressão gráfica tendo por base os tipos móveis, possibilitou a rápida substituição dos livros copiados um a um pelos copistas, seja no suporte pergaminho ou papel, pelo livro impresso. Este novo suporte, o livro impresso, permitiu de forma rápida e barata que a ampliação e a difusão do conhecimento chegasse a um número maior de pessoas que antes não tinham acesso a ele. (Preparo para breve um post específico sobre este período inicial do livro impresso).


A Bibliodiversidade

A cada ano as editoras são obrigadas a tomar a dolorosa decisão de que determinados títulos não serão mais reimpressos e que, portanto, sairão do catálogo. Para quem não sabe, a maioria dos títulos disponíveis no catálogo das editoras vende muito pouco. Via de regra, livro não tem escala comercial.

Assim, é extremamente comum que uma editora com mais de 500 títulos em seu catálogo tenha entre 10% e 20% desses títulos com venda individual de até 250 exemplares por ano. E por que esta venda anual deixa de ser viável em termos de negócio editorial?

Imagine um título que passou a vender 200 exemplares por ano e que precise ser reimpresso. Para que o preço de capa possa ser mantido, para que não seja aumentado, é necessário que a reimpressão seja de no mínimo 1.000 (mil) exemplares. Portanto, com o histórico de venda desse título (200 exs/ano), esses 1.000 (mil) exemplares seriam suficientes para abastecer o mercado por uns quatro ou cinco anos. Porém, as editoras não têm somente um único título com estas características de venda. Multiplique-se este caso por 50 ou 100 títulos e a editora passaria a ter um estoque entre 50 e 100 mil exemplares parados durante quatro ou cinco anos. Fica claro que é uma operação inviável em termos de negócio e, por isso, ano a ano, títulos e mais títulos deixam de estar disponíveis e vão saindo dos catálogos.


O Livro Digital

O livro digital virá viabilizar uma parte significativa do negócio do livro. Neste momento inicial penso em quatro possibilidades:
01-livros já em catálogo, publicados, mas que não seriam mais reimpressos devido à baixa venda;
02-livros que a editora já sabe de antemão que não teriam fôlego de vendas para uma reimpressão mas que, pelo seu perfil, são importantes para o catálogo dessa editora. Livros que fazem parte de coleções costumam ter uma venda muito variável entre eles e, portanto, são candidatos ao formato digital;
03-livros que são formados por coletâneas de artigos com viés mais acadêmico, universitário, e que tendem a parar nas máquinas xerográficas - diminuindo assim suas possibilidades de permanecer em catálogo -, também são candidatos ao formato digital;
04-livros que a editora quer experimentar, testar, sejam de linhas editoriais que já publica, sejam de novas áreas.


Zahar Digital

A Zahar, fiel ao seu pioneirismo, presente desde 1956, sai na frente como a primeira editora brasileira a ter grande parte de seu catálogo disponível em versão digital.

O caminho para esta inovação começou no início do ano de 2009 com as negociações envolvendo os autores e/ou os detentores dos direitos autorais cujos contratos passaram a prever a publicação de suas obras no formato digital, resguardando, assim, os direitos autorais a que fazem jus.

Outra etapa do processo de preparação para estartar o e-book é a transformação dos arquivos dos livros já publicados para o formato digital. Para entender um pouco da complexidade deste processo cito o texto de Ana Paula Rocha publicado no seu blog Livros e Nada Mais:

"Para quem se interessa um pouco sobre o processo, e as dificuldades envolvidas na disponibilização dos arquivos, vou dar uma explicação sintética. Quando os livros são terminados geram-se arquivos em formatos diferentes. Um dos formatos é o PDF, que muitos já usam para manter a integridade no envio de documentos importantes. O PDF é um arquivo “rígido” que não permite muitas interações do tipo indexação, aumento de fonte etc. Como os leitores (os readers) de e-book precisam ter uma maleabilidade eles não leem bem PDFs. Por conta disso precisamos converter esses arquivos para um formato mais amigável denominado ePub.

Tudo seria muito simples se a conversão fosse automática e fiel. Mas é claro que a tecnologia não quer facilitar nossa vida imediatamente. Precisamos apanhar muito antes de achar o caminho certo de fazer essa conversão e, para isso, precisamos passar por um intenso processo de revisão e depois transferir para um programador fazer as alterações, uma vez que o ePub utiliza a linguagem html.
"

Com este processo visando o e-book já em andamento, faltava encontrar uma forma de comercialização que garantisse a segurança deste novo sistema/suporte, e de um parceiro que a pudesse executar. Concomitante ao processo da Zahar, a Gato Sabido - primeira e-bookstore brasileira -, também se preparava para este novo sistema de comercialização do livro. Este encontro vai trazer questões importantes para o negócio do livro no Brasil a partir deste ano de 2010.

A Gato Sabido tem um sistema de proteção e de gerenciamento que vai possibilitar a comercialização de e-books integrais e, num segundo momento, a comercialização de capítulos de livros. Os e-books serão protegidos por DRM (Digital Rights Management), que é um sistema de gerenciamento de direitos digitais que visa inibir a reprodução de cópias ilegais sem pagamento de direitos autorais.

O desenvolvimento deste novo mercado digital vem de encontro a uma demanda que está escondida, camuflada, atrás da atual pirataria de livros, principalmente a cópia xerográfica, o xerox de livros, seja no todo ou em partes. Na visão de Mariana Zahar, diretora executiva da editora, "onde há pirataria, há demanda." Cabe portanto às editoras encontrar formas legais de comercialização do livro que possam atender essa demanda e não, simplesmente, ficar apenas reclamando que existe a pirataria. A melhor forma de combater a pirataria é oferecer alternativas economicamente atraentes para o acesso ao livro ou a partes dele. Isso não invalida a necessidade de campanhas de esclarecimento sobre os direitos autorais além da ação de busca e apreensão dessas cópias ilegais, trabalho que a ABDR já desenvolve.

Mas, voltando à questão, que demanda é essa que aparece pela prática da pirataria? A justificativa mais comum para a reprodução de cópias xerográficas nas universidades e faculdades diz respeito ao preço do livro, principalmente porque os estudantes vêm a compra do livro como CUSTO e não como investimento para a sua formação profissional. Outro ponto diz respeito à prática da leitura de capítulos e não de livros na formação universitária. Prática esta que tem na já famosa "pasta do professor" a base para o xerox, para a mutilação dos livros e consequente ausência de pagamento a quem criou o conteúdo - o autor - e a quem investiu na produção de um produto e o distribuiu - a editora. Mais uma vez a justificativa vem na questão do preço, com o discurso de que não compensa comprar um livro se vai-se ler somente um capítulo etc.

Como atender essa demanda clara de acesso ao livro, então? Com o livro digital. Este novo formato/suporte vai possibilitar a diminuição do preço final do livro, além de garantir que o aluno, o leitor, possa ter acesso a um produto com a mesma qualidade do livro impresso, um produto também durável, e com o respeito à lei de direitos autorias e ao trabalho de milhares de pessoas que fazem a cadeia produtiva do livro, além da geração de recursos públicos via arrecadação de impostos. Tudo que é pirata sai mais caro depois, seja para cada um de nós, seja para a sociedade.

Desde a metade de dezembro de 2009 já estão disponíveis no site da Gato Sabido 34 títulos da Zahar em formato e-book (será necessário um reader para a leitura; a Gato Sabido tem o Cool-er ), ou também na versão PDF, para ser lido em qualquer computador. Esta seleção inicial da Zahar tem desde o atual best-seller da editora, O Andar do Bêbado, até long-sellers como Cultura: um conceito antropológico e Freud e o Inconsciente. O projeto em desenvolvimento prevê que até fins de março de 2010 cerca de 300 títulos estejam disponíveis em formato digital. O preço do livro digital é cerca de 30% mais barato do que o mesmo exemplar impresso, devido à redução de custos com impressão, papel, frete, armanezamento, embalagens, manuseio, logística de distribuição e logística reversa, cobrança bancária etc, etc.

Existem várias outras questões a serem comentadas mas que ficarão para outros posts. Só pra citar algumas:
- como as livrarias poderão vir a participar desta nova fase de comercialização do livro?
- será mais fácil publicar um livro?
- as editoras continuarão sendo necessárias?
- o livro físico vai desaparecer?
- o que será afetado na atual forma de produção e comercialização do livro físico?

De como chegamos a este estado de coisas

  Em 11 de janeiro de 2020 foi registrada, na China, a primeira morte por Covid-19. A população mundial hoje está na ordem dos 7,8 bilhõ...