domingo, 28 de fevereiro de 2010

Resenha #1 Aprendendo a Pensar com a Sociologia

Partindo da premissa que a informação e o conhecimento devem circular e que nem todos podem ter tido acesso anteriormente, vou passar a reproduzir no blog, com os devidos créditos, opiniões de outras pessoas que julgo importantes e que podem vir a interessar a quem acompanha este blog. Virão sempre com o título de Resenha # e uma numeração sequencial. Para começar, nada melhor que um grande pensador, Zygmunt Bauman, resenhado por um grande escritor, José Castello.

Sociologia da Imperfeição

Escrita por José Castello

Publicada no Jornal Valor Econômico, 12/2/2010




[Zygmunt Bauman rebate aqueles que creem que as ciências sociais se tornaram inúteis. Para o autor polonês, elas continuam a desafiar os clichês do senso comum.

A queda do Muro de Berlim, a crise do marxismo e a decadência das utopias tiveram efeitos devastadores sobre o saber sociológico. No mundo líquido, fragmentado e disforme onde vivemos, dominado pelas formas imperfeitas, não parece mais possível pensar no estudo científico das sociedades e na definição das leis que as regem. Para muitos, a sociologia perdeu a importância. Já não pode dar conta de um mundo que se dilui e não mais se submete a leis fixas.

Não é bem o que pensa o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, de 84 anos. Em "Aprendendo a Pensar com a Sociologia" (trad. Alexandre Werneck, Jorge Zahar Editor, 304 págs., R$ 29,90), livro escrito com Tim May, ele defende a ideia de que a sociologia continua potente, porque continua a desafiar os clichês do senso comum.

Praticada não mais como dogma, mas como um instrumento de interrogação da vida social, ela nos faz ver que os aspectos mais familiares da vida, aqueles que nos parecem simples e banais, podem ser repensados. Com isso, facilita o fluxo e a troca de experiências e transforma nosso cotidiano. Se a filosofia nos ajuda a morrer, a sociologia nos ajuda a viver. (grifo meu)

Em seu novo livro, Bauman reflete sobre o modo como a sociologia pode nos ajudar, objetivamente, em nossa vida pessoal. A maneira como ela estabelece limites, molda perspectivas, enfim, desenha opções e, também, impossibilidades. A seu ver, a sociologia é, antes de tudo, uma prática. "Ao ampliar o horizonte de nosso entendimento, ela é capaz de lançar luz sobre o que de outra maneira poderia passar despercebido no curso dos acontecimentos", escreve.

A sociologia, diz Bauman, parte da constatação de que as condições gerais da sociedade produzem consequências drásticas em nossa vida pessoal. Que elas atingem nosso cotidiano e influem nas coisas mais banais da existência. Isso não quer dizer que não tenhamos escolha ou que não sejamos livres; quer dizer que essas escolhas e essa liberdade estão moldadas pela força das contingências. Saber pesar a relação entre liberdade pessoal e dependência é a chave do viver bem. Ficar só com um dos aspectos - julgar-se absolutamente livre ou irremediavelmente prisioneiro - só bloqueia nosso caminho.

A vida em sociedade nos leva a deparar com pessoas "estranhas", isto é, que não se enquadram em nossos modelos e expectativas, lembra o sociólogo. Com a globalização e a profusão de "estranhos", expandiram-se os mecanismos de segregação social - seguranças, grades, crachás, bilheterias, recepções, etc. Em vez de dominar esses "estranhos" ou de fixá-los em padrões, afirma Bauman, a sociologia nos ajuda a lidar com eles. Desse modo, deixa de ser uma ciência dura, que estabelece e define, para se tornar um saber móvel, que busca uma sincronia com o mundo.

"Isso não significa dizer que a sociologia tenha o monopólio da sabedoria no que diz respeito às experiências", alerta Bauman. "Muito embora sem dúvida as enriqueça nos ajudando a compreender melhor com os outros e por meio dos outros." Ciência, antes de tudo, do outro, a sociologia não pode se congelar no culto ao mesmo e à repetição. Ela é um "pensamento que não refreia", define, e facilita o fluxo e a troca de experiência entre os diferentes.

Ainda assim, no confuso mundo de hoje, inquietos, buscamos "soluções" para nosso desassossego. Para conter as incertezas, preferimos nos fixar em uma imagem qualquer, nem que seja na simples aparência. Baseada nas semelhanças, a aparência pode nos dar a ilusão - porque usamos a mesma marca de automóvel, de perfume ou de tênis - de que pertencemos a determinado grupo. Pode nos fazer crer que sabemos onde estamos e quem somos. Quando, na verdade, continuamos perdidos.

Outros "se salvam" da inquietação adotando uma rotina ou imitando rotinas alheias. Essa proximidade, no entanto, não assegura o sentimento de "responsabilidade moral" - que surge quando um sentimento de responsabilidade brota em nós, voltado para o bem-estar e a felicidade do outro. Ao contrário: o sentimento moral, diz Bauman, frequentemente aparece entre pessoas que não têm a mesma aparência e estão fisicamente muito distantes. Nem as aparências nem as semelhanças garantem a fraternidade.

Uma comunidade não se define pela proximidade física ou pelas semelhanças aparentes, ele insiste. Uma comunidade se define por uma "unidade espiritual". Resume: "A comunidade é mais um postulado que uma realidade". Compartilhar as mesmas inquietações e dividir os mesmos ideais, e não estar lado a lado fisicamente ou se espelhar no outro, isso sim é viver em comunidade. As redes sociais se formam graças às expectativas em comum - e não por causa de alguma condição natural ou de coincidências.

O dever moral, admite Bauman, costuma entrar em colisão com o sentimento de autopreservação. "Um não pode reivindicar ser mais natural que o outro." Há, sempre, uma tensão em jogo e é preciso enfrentá-la, administrá-la - embora nunca se chegue a resolvê-la. O mesmo ocorre nas relações amorosas. Nelas, as realidades dos dois parceiros nunca são idênticas. A própria ideia de intimidade pode ser uma armadilha. As diferenças podem ser tão esmagadoras, ele adverte, que os parceiros farão exigências um ao outro que jamais poderão cumprir. Também no amor, o estar ao lado exige respeito. Amar é trocar diferenças e estilos. É mais uma troca que um encontro.

Não se deve esperar, diz Bauman ainda, que a sociologia "solucione problemas". A vida não é um "problema a resolver". Ele alerta: "Cada nova tentativa de ordenar uma parcela ou uma área específica da atividade humana cria novos problemas". Não se deve querer que a sociologia forneça soluções para os conflitos sociais. A sociologia não nos diz como resolver um problema. Ela se limita a apontar o problema com que devemos lidar. E isso já é muito.

É verdade, isso nos frustra. Na sociedade de mercado, lamenta Bauman, só queremos a perfeição. Consumimos compulsivamente, em busca de um estilo de vida perfeito. Nunca o atingimos, e isso perpetua o consumo, mas não nos aproxima de uma solução. "Somos continuamente encorajados a consumir em nossa busca do inatingível - o estilo de vida perfeito em que a satisfação reine, suprema."

Muitos ainda acreditam que sociologia pode nos apontar o melhor caminho rumo à perfeição. Não pode. Nem é para isso que ela existe, adverte. A sociologia, ao contrário, mostra que a solução inexistente é, na verdade, o que nos impede de aceitar o outro e de avançar. É a busca frenética de uma solução que nos impede de viver. Nesse sentido, toda sociologia é uma sociologia da imperfeição. "O grande serviço que a sociologia está preparada para oferecer à vida humana é a promoção do entendimento", diz. Não existe sociologia sem tolerância. ]

Relação dos 19 livros de Zygmunt Bauman publicados pela Zahar até fevereiro de 2010:
Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos
Aprendendo a Pensar com a Sociologia
Arte da Vida, A
Comunidade: a busca pr segurança no mundo atual
Confiança e Medo na Cidade
Em Busca da Política

Europa: uma aventura inacabada
Globalização: as consequências humanas
Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi

Medo Líquido
Modernidade e Ambivalência
Modernidade e Holocausto
Modernidade Líquida
Mal-Estar da Pós-Modernidade
Sociedade Individualizada: vidas contadas e histórias vividas

Tempos Líquidos
Vida Líquida

Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria
Vidas Desperdiçadas

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Entrevista de Pedro Herz, da Livraria Cultura, à Folha de São Paulo

Reproduzo abaixo a entrevista de Pedro Herz à Folha de São Paulo publicada em papel e na internet, inclusive com o link para a página da Folha. Na entrevista Pedro Herz fala de alguns pontos importantes para o mercado do livro e que merecem ser pensados e debatidos.

Crédito da foto: Karime Xavier/Folha Imagem

Destaco os seguintes pontos sobre os quais, inclusive, já emiti opinião neste blog:
01-o livro digital não é e, não será, uma ameaça ao livro impresso;
02-a importância da venda pela internet; é a segunda loja da Cultura;
03-a migração do comércio para os shoppings;
04-a deficiência do ensino e a não formação de leitores em quantidade é que são a ameaça ao comércio do livro;
05-falta de profissionalização no negócio do livro;
06-a visão de buscar fidelizar clientes e, não, simplesmente, vender livros.

21/02/2010 - 07h42 Folha online

Ameaça ao livro não é e-reader, mas falta de novos leitores, diz dono da Livraria Cultura

FABIO VICTOR da Folha de S.Paulo

Numa viagem recente a Nova York, o dono da Livraria Cultura, Pedro Herz, fez um teste: ao andar de metrô pela cidade, observou quantos passageiros portavam e-readers. Em dez dias, encontrou um único leitor com o novo equipamento.

Herz diz já ter visto burburinho semelhante em outros tempos, avalia que tudo não passa de "uma nuvem" e atribui tanto barulho à sede da indústria eletrônica por escoar os novos produtos que cria em velocidade incontrolável. A ameaça real ao futuro do livro, opina, é ausência de novos leitores entre os jovens.

Apesar do ceticismo quanto à nova coqueluche do mercado, ele informa que em março a Cultura passará a vender 150 mil títulos de e-books em suas lojas.

Neste ano, a rede, que tem nove unidades (cinco em São paulo e as outras em Campinas, Recife, Porto Alegre e Brasília), abrirá mais três: Salvador, Fortaleza e uma segunda na capital federal. Com mais de 3 milhões de títulos em catálogo e 1.400 funcionários (serão mais 400 para as três novas lojas), a Cultura teve faturamento de R$ 274 milhões em 2009, crescimento de 18% em relação a 2008.

Segundo Herz, está mantida a decisão de pôr fim à empresa familiar na terceira geração (ou seja, a de seus filhos) e de abrir em breve o capital. Por ora deu apenas o primeiro passo, se associando no ano passado ao fundo de investimento Capital Mezanino. O fundo tem hoje 16% da empresa e família Herz, 84% --Pedro é o presidente do Conselho de Administração.

Leia a seguir a entrevista que ele deu à Folha num restaurante paulistano.

Folha
- Quando a internet surgiu como uma ameaça ao mercado de livros, você começou antes a vender online. Agora, que o livro eletrônico paira como ameaça ao livro de papel, o que a Cultura vai fazer?
Pedro Herz
- Em março vamos disponibilizar 150 mil títulos em formatos para e-readers. Eu acho que é uma opção a mais para o leitor. Não vamos vender o hardware, só conteúdo. Os formatos são tantos que pode ser que você compre num formato que o seu leitor [equipamento] não leia. A Amazon fez isso com o Kindle, se você comprar um e-book na [livraria] Barnes & Noble e tem um Kindle, não conseguirá ler. Foi um tiro no pé da Amazon, obrigar o leitor a comprar no seu formato. É o carregador de celular que só serve no seu, uma ideia totalmente superada. Os formatos são vários, dependerá de como cada editora vai digitalizar seus livros. Vai ser uma barafunda, porque se você tem um formato e teu e-reader não lê, onde o leitor vai reclamar? É o que está acontecendo um pouco nos EUA, com a MacMillan e a Amazon, mas pela guerra de preços [por discordância sobre o valor dos livros, títulos da editora foram retirados do catálogo da Amazon, mas depois elas chegaram a acordo].
Não sei bem, está tudo muito cru, muito no início, e não sei bem como serão as vendas. Acho que bem pequenas.
Acho o e-reader uma ferramenta fantástica, mas daí a virar o substituto do livro... Já vi esse filme antes, já vi o VHS chegar e dizer que ia acabar com o cinema. Já vi, na Feira de Frankfurt, dizerem que o mundo ia virar CD-ROM, e o mundo não virou CD-ROM. Dois anos depois não se falava nisso, as editoras me falavam: "Pô, perdemos um dinheirão, admitimos um monte de gente e não deu em nada". A sensação que eu tenho é que a gente está vendo uma nuvem, que vai passar. Pode ser que chova, mas, num curto prazo, não vai acontecer nada.

Folha - O sr. tem e-reader, usa para ler?
Herz - Não, tem um monte na livraria, mas eu não uso.

Folha - E tem um monte para quê?
Herz - Pra conhecer. Eu estive em Nova York há pouco, passei dez dias, e fiquei muito atento a quantas pessoas eu ia ver lendo em e-reader. Gastei mais de US$ 80 em metrô, pra cima e pra baixo. Se eu te disser que vi um único cidadão com um na mão, você acredita? Em dez dias em Nova York, andando de metrô, onde todo mundo lia --ou uma revista, ou um jornal ou um livro--, eu vi uma pessoa com um e-reader. Um detalhe que me chamou a atenção foi que esse leitor lia segurando o aparelho com as duas mãos, e as pessoas que liam livros usavam uma mão apenas. São coisas interessantes. Dos leitores que entrevistei informalmente nas livrarias, 100% disseram que não vão trocar.

Folha - Em que medida o rebuliço em torno do e-reader se deve ao poder de marketing da indústria eletrônica?
Herz
- Não só o marketing é tão forte como a indústria, qualquer indústria, tem necessidade de criar modelos novos, seja do que for, e escoar os modelos novos. E existem coisas paradoxais: todo mundo trabalha para ter mais tempo de lazer, aí chega a indústria e desenvolve um computador que é um centésimo de milésimo de segundo mais rápido do que aquele que você tem e tenta te convencer a comprar o desgraçado. Peraí, mas se eu quero ter mais tempo, por que meu computador tem que ser Fórmula 1? Eu não tenho certeza se as pessoas querem essa velocidade toda. Eu troco de carro a cada cinco anos, e sou um cara que ando pouco, quando compro um carro algum amigo já diz: "Esse carro é meu quando você vender". Se você me perguntar por que que eu troquei, eu não sei te responder direito.

Folha - Qual a principal desvantagem do livro de papel?
Herz - Imagina um advogado que vai fazer uma audiência no Acre e tem que levar aquela papelada do processo. Um editor de uma grande editora de livros, que recebe 50 livros novos por semana de todo mundo, para resolver se vai publicar ou não, ter isso digitalizado e num voo de 12 horas para a Europa ir dando uma olhada no que interessa ou não. É de uma utilidade fantástica, mas não sei se é a melhor ferramenta para o leitor de livros. E tem outra pergunta que eu faço: fará novos leitores? Quem não lê livro de papel, não vai passar a ler por causa do livro eletrônico. Eu não sei como reagirão os que estão na maternidade.
Acredito que quem faz leitor são os pais, inegavelmente. Os jovens leitores são filhos de leitores. Dificilmente aparece uma criança ou adolescente que não tenha os pais leitores. A grande campanha que na minha opinião deveria ser feita pelo governo é mais ou menos assim: "Se você não lê, como quer que seu filho leia?". Essa é a pergunta que deve ser feita. Porque os meus filhos "liam" sem ser alfabetizados, pegavam o livro na mão para imitar os meus gestos.

Folha - As vendas de livros pela internet representam quanto do total de vendas da Livraria Cultura?
Herz
- É a nossa segunda loja. A primeira é a da Paulista. [As vendas pela internet] representam 16% do faturamento [em 2009].

Folha - Esse índice vem crescendo nos últimos anos?
Herz - Vem, mas as vendas das lojas físicas também.

Folha - Proporcionalmente, qual cresceu mais?
Herz - Não tenho a informação, teria de separar isso, ver quanto a internet cresceu sem abertura de lojas. Vi uma coisa interessante: abri uma loja em Brasília, que vai super bem. A [venda pela] internet na região fez isso [faz com a mão gesto de subida]. É de alguma forma um símbolo de segurança para o comprador. E muita gente usa a internet para pesquisa, e realiza a compra fisicamente. É muito comum você ver o cara chegar na livraria com o que ele imprimiu na internet.

Folha - Li numa reportagem, com dados da Associação Britânica de Livreiros, que houve uma queda de 27% no número de lojas de rua em dez anos no Reino Unido --só em 2009 foram fechadas 102 lojas. É uma tendência inevitável também no Brasil? O sr. tem dados?
Herz
- São dados poucos confiáveis, não são representativos do mercado. Nós não somos sócios de nenhuma das entidades de classe. Os números de consumo de livros divulgados no Brasil embutem compras do governo, e eu não sei se são confiáveis.

Folha - Mas uma pesquisa de 2009 encomendada por CBL (Câmara Brasileira do Livro) e Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) fazia a separação entre essas compras...
Herz
- Eu não sou fornecedor do governo, não sei se o governo comprou mais ou menos, tenho que acreditar naquilo que dizem. Acho que falta nesta pesquisa um ingrediente que, não sei por que razão, fica fora, que é o fabricante de papel. Quanto foi vendido para publicar livro, que é isento de imposto. Os fabricantes de papel concordam com esse aumento? Houve um aumento de quantas toneladas de papel para livro? Eu não sei.

Folha - Mas o fechamento das chamadas livrarias de rua parece inexorável, as lojas novas que a própria Livraria Cultura abrem são todas em shoppings...
Herz
- É, tem uma série de componentes. Por que se prefere o shopping? Por que é mais seguro, facilidade de estacionar. São poucas lojas de rua que oferecem essa comodidade. Numa cidade como São Paulo, onde o transporte público é ruim, você tem que andar não sei quantas quadras para deixar o carro numa loja de rua, o medo toma conta, os pais não deixam os filhos, isso no Brasil. Em Nova York ou Londres é um pouco diferente.

Folha - Como a crise de 2008/2009 atingiu o mercado?
Herz - O mercado eu não sei, a nós não atingiu. Nós crescemos legal, 18%. Acho que a solução continua nos livros, então as pessoas começaram a ler, procurando explicações [para a crise], porque não aconteceu nada de novo, nós já vimos isso outras vezes.

Folha - O sr. vê algum novo nicho a ameaçar as vendas de livros nas livrarias?
Herz - A grande ameaça que existe é a não-formação de novos leitores. As famílias [ricas] que tinham cinco filhos há um século, hoje ou não têm nenhum ou têm um, no máximo dois. O número de leitores cresce pouco, se é que cresce. Se você pegar o universo da classe D, esse pai não tem orgulho nenhum do que faz, nem a mãe. Então a compra de um lápis significa para ele um investimento na educação de um filho. Acho isso extremamente bacana, é um raciocínio válido, mas sabemos que é insuficiente. O apagão do ensino taí, a dificuldade que temos de admitir gente é homérica. A gente aplica testes básicos dos básico de conhecimentos gerais razoáveis. A gente quer que o candidato leia jornais, uma revista, que seja atualizado. Você pergunta para ele quem escreveu "Dom Casmurro", metade levante e vai embora. E são todos universitários formados. E não sou o único que tem esse tipo de problema. Falei com outros empresários, de outras áreas, que têm exatamente o mesmo problema. Gente que não encontra engenheiros, que não encontra médicos. Veja o resultado do Enem. Está difícil acreditar. Esse crescimento anunciado é sustentado? Ou é um momento de paternalismo que está aí? Estou procurando gente [para as lojas] no Nordeste, tem gente que não quer ser registrada. Perguntamos por que, e dizem: "Ah, porque eu recebo a Bolsa [Família], minha mulher recebe a Bolsa. E a população cresce nesses lugares do Nordeste. E gente esclarecida que pode ter filhos está tendo cada vez menos, se é que está tendo. Conheço casais de amigos, leitores, muito bem casados, felizes, que preferiram não ter filhos.

Folha - O aumento da oferta de livros nos supermercados e expansão do comércio de livros usados online, por exemplo, podem ameaçar as vendas nas livrarias?
Herz
- Minha mãe começou a livraria achando que muito livro valia a pena ser lido e não ser comprado. Ela começou alugando livro. Sou francamente favorável ao comércio de livros usados. E há espaço para todo mundo. A rua da Consolação está cheia de loja de lustres. Peraí, o Brasil é muito grande. Sou francamente favorável. O que eu condeno é que um irmão mais novo não possa aproveitar o livro do irmão mais velho na escola. O que é que mudou na aritmética e na geografia? Por que tem que jogar fora esse livro. Hoje o governo até faz uma campanha para o aproveitamento [do livro didático], extremamente salutar, mas não é só. Por que o livro novo tem que ter um leitor por exemplar? Não tem biblioteca. Um livro, um leitor, é pouco.
Supermercado não me afeta em nada. Eu acho que contribui para a formação do leitor. Eu não quero fazer uma venda, eu quero um cliente. Se ele começar a gostar de ler, o próximo passo daquele que comprou um livro no supermercado será a livraria.

Folha - O que achou da Biblioteca de São Paulo, cujo modelo foi inspirado, segundo a Secretaria Estadual de Cultura, em livrarias tipo megastores?
Herz - O [secretário estadual de Cultura, João] Sayad me falou que eles se inspiraram muito no modelo da [Livraria Cultura da avenida] Paulista, que é um local onde as pessoas ficam. Fiquei orgulhoso. É possível criar um lugar onde as pessoas se entretêm, têm opções para aprender e ver alguma coisa de concreto. A coisa mais bacana que achei é que ela vai funcionar nos fins de semana. Gente, o Brasil é o único país em que as bibliotecas fecham no fim de semana, quando os pais podem levar os filhos.

Folha - Por que a Livraria Cultura resiste a entrar nas entidades de classe?
Herz - Não vejo o porquê. Não vejo muito sentido para as entidades de classe em meu ramo. Não acredito muito no que eles estão fazendo ou fizeram em benefício [do setor].

Folha - Já sofreu represália por isso?
Herz
- Não, nunca sofri. E nós nos falamos, numa boa, com a Câmara [Brasileira do Livro], a ANL [Associação Nacional de Livrarias], o sindicato [nacional de editores de livros, o Snel]. A relação é muito cordial. Mas não participo de reuniões, nem de feiras, nem de bienais. Acho que qualquer feira é um lugar de plantio, não de colheita. E as bienais são de colheita, mas é impossível colher alguma coisa na bienal. Todo mundo diz que perde dinheiro. Então está na hora de repensar esse modelo.
E tem coisas de que a indústria não tem interesse. Por que o livro do irmão mais velho não pode ser aproveitado pelo mais novo?

Folha - Numa entrevista em 2006, o sr. afirmou que a indústria editorial era defasada, não tinha visão e não tratava o livro como negócio. Permanece assim?
Herz - Bastante. Quando comecei [a vender livros] na internet [em 1995], a gente desenvolveu um software para as editoras nos mandarem os seus catálogos num formatinho já pronto, txt, com informações básicas (autor, título, sinopse), para alimentar a internet. Se eu te disse que zero respondeu. Tive que fazer tudo eu. Para divulgar o livro de uma editora xis. Ninguém viu o potencial da internet do qual falo há 15 anos. Está tudo pronto lá, autor, página, preço, medidas. Não quero informação confidencial, quero informação que eu não tenha que sacar funcionários para fazer uma coisa que já está pronta. Hoje uma grande queixa dos internautas é a falta de resenhas [sinopses] dos livros. Eu que tenho que fazer a resenha do livro que você editou? Pô, me entrega isso pronto, amigo. Muitas mandam, mas muitas não.

Folha - Qual o cronograma de abertura das novas lojas?
Herz
- Brasília será a primeira, entre abril e maio. Fortaleza está marcado para 19 de maio. E Salvador em julho. Estamos procurando um lugar no Rio de Janeiro, mas está dificílimo. Não acho lugar, não tem um espaço. O Rio tem uma geografia que não nos ajuda. O problema de espaço é tão complicado que um prédio encosta no outro. Tenho que chegar ao Rio com a mesma identidade, não posso chegar com um posto de serviços. Preciso de pelo menos 1.800 m2, com um pé direito que permita um mezanino. Não acho nem para discutir o valor.

Folha - De início o sr. resistiu a vender outros produtos e virar megastore. O que mais poderá ser agregado às vendas nas suas lojas?
Herz - Chegamos à conclusão de que o leitor também ouve música e vê filme.

Folha - Mas, por esse raciocínio, esse mesmo leitor assiste a TVs de plasma, compra aparelhos eletrônicos... Significa que outros produtos poderão ser vendidos também?
Herz
- Dessa linha não.

Folha - Então de que outra linha?
Herz
- Não sei. Temos alguma coisa de produtos educativos, uma pequena parte de Lego. E começamos uma pequena coisa agora [no final do ano passado] com games, mas não hardware.

Folha - Em relação ao caso do cliente que foi atacado [na cabeça com um taco de beisebol por um homem] dentro de uma loja da Livraria Cultura em dezembro passado, o que mudou para vocês?
Herz
- [estende um exemplar do último número da Revista da Cultura] É o meu editorial. [Herz se refere ao episódio como o "triste dia 21 de dezembro", no qual "Um cliente e nós fomos violenta e covardemente agredidos. É assim que me sinto". Diz que o caso é "muito revelador sobre o mundo em que vivemos, sobre a legislação que nos rege (aparentemente um doente mental reincidente que estava à solta e só agora, que agrediu uma vida, e não algo material, foi detido)". "Quantos doentes mentais estão na rua agredindo pessoas... E o que fazer? A resposta eu não tenho. Só reflexões e pesar."]

Folha - Há algo que possa ser feito para evitar casos como esses?
Herz - Tem, com relação à lei. Ele já tinha quebrado os vidros da livraria [um ano antes], e o delegado soltou ele meia hora depois. Para agir contra ele [na época], eu teria de abrir um processo. Só que ele não fala uma frase emendada na outra, é um doente mental, é louco. Então o Estado não cuida do doente mental. A ideia de abolir o manicômio foi para que a família tomasse conta, mas a família aí se dá conta que dá muito trabalho e que custa dinheiro, e abandona o cara, que fica solto, até fazer o que ele fez. [Segundo Herz, o agredido continuava em coma à época da entrevista, e o agressor permanecia detido por tentativa de homicídio].

Folha - Vocês modificaram algo na segurança das lojas?
Herz - Não há o que mudar. Entre a entrada do cara na livraria e a agressão passaram-se menos de dois minutos. O delegado falou que se as imagens da agressão vazarem na internet, esse preso corre risco de vida, porque ele agride de uma maneira tão violenta e tão covarde que os presos não toleram isso. O cara está agachado olhando o livro numa estante embaixo, ele vem por trás e mete o taco na cabeça do cara. Ele entrou sem nada na mão, só com o taco e o facão dentro da mochila, de boné, bermuda...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Perda da Capacidade de Vender

Já faz alguns anos que venho tentando demonstrar para livrarias e distribuidores que a consignação, como base da comercialização do livro, não é a maravilha que parece ser. Mas, agora, acho que encontrei uma tese que pode comprovar isso, e que é a seguinte: a consignação leva à perda da capacidade de vender livros.

Explico-me: a consignação, como principal relação comercial de uma livraria, de uma distribuidora e até de uma editora, faz com que pouco a pouco, a cada ano, estas empresas e seus funcionários percam a capacidade de vender, seja para livrarias e distribuidoras, no caso da editora, seja para o consumidor final, o leitor, no caso da livraria.

O comércio, desde suas origens há alguns milhares de anos, sempre se baseou na compra e venda de mercadorias. Alguém produz, alguém compra desse produtor, e alguém vende para o consumidor final. Esta é a relação básica do comércio. Hoje, no comércio do livro, a editora produz e, na maioria dos casos, consigna para distribuidores e livrarias, no caso de atendimento direto. Os distribuidores também consignam para as livrarias que atendem. Portanto, o que deveria ser uma operação eventual, a consignação, com o tempo transformou-se na base da atual comercialização do livro no Brasil. Em casos extremos, existem distribuidores e livrarias que não admitem nem pensar na operação de compra.

Vejo vários problemas diretamente relacionados à atual prática da consignação e que dizem respeito não somente às editoras, mas também às distribuidoras e livrarias, e aos funcionários de todas elas diretamente ligados à área de vendas. É claro que existem exceções ao que será relatado abaixo.

Problema 1-acomodação: a princípio é uma palavra forte, mas que pode ser útil para chamar a atenção para o problema. Se os livros vão consignados para distribuidores e livrarias, não é necessário muito empenho para colocar o livro nas distribuidoras e estas nas livrarias. Nas livrarias, como o livro também está consignado, isto é, somente será pago às distribuidoras e editoras se for vendido, também não será necessário empenho para a venda.

Solução 1-empenho: a maioria das pessoas que entram numa livraria já sabe o que vai comprar e realizará a compra no caso da livraria ter o livro procurado. O empenho é necessário a partir deste ponto. Como vender um segundo livro para esse cliente? Como vender um livro que não está em estoque na livraria no momento? Como vender um livro que ainda não foi lançado, a pré-venda? Como trabalhar o acervo da livraria, como destacá-lo, como relacioná-lo com o que acontece no mundo em termos de economia, política, cultura etc? Agora, mais uma pergunta: se as vendas por impulso já existem e se os livros estão consignados, qual a necessidade que o funcionário tem de se empenhar para dar conta das questões acima? Existe alguma interação entre os responsáveis pelos pedidos de consignação e os vendedores da livraria? Eles se falam? Trocam ideias?

Exemplo de acomodação 1, verídico: uma amiga editora entrou numa respeitada livraria e perguntou ao vendedor/atendente/livreiro se tinha o livro X e ele foi buscá-lo na prateleira. Bom, não? Com o livro nas mãos, minha amiga perguntou se ele tinha os outros livros do autor. Para sua surpresa, a resposta atravessada por uma pergunta que a deixou boquiaberta foi: "mas a senhora vai levar esses outros livros também?" Minha amiga ainda teve presença de espírito e respondeu que não levaria nem aqueles e nem o que estava em suas mãos, e foi embora da livraria.

Exemplo de acomodação 2, presenciado: o livro da Zahar "O Andar do Bêbado" está, no momento em que escrevo, há 23 semanas nas listas de mais vendidos e aproxima-se dos 40 mil exemplares vendidos. O que se imagina da exposição de um livro com essa trajetória de vendas é que esteja em exposição bem destacada nas livrarias, sim ou não? Pois bem, semana passada visitei duas livrarias importantes no Rio e em São Paulo; numa delas estava exposto na parte inferior da principal mesa da livraria e, na outra, nem exposto estava. Só era encontrado na prateleira, na seção de física. Isso é que é capacidade de perder vendas! Agora, se o fornecimento dessas lojas fosse por compra e não por consignação, isso aconteceria? Segue um exemplo de outra forma de trabalhar.

Exemplo de empenho, também verídico: ao longo de agosto de 2009 começa a divulgação do filme Alice no País das Maravilhas, dirigido por Tim Burton, e que será lançado em março nos EUA e em abril no Brasil. O livro da Zahar "Alice edição comentada" de Lewis Carroll estava em reimpressão e chegou no final de agosto. Passei a informação para as livrarias e distribuidores. Terminou o ano e uma livraria importante vendeu 10 vezes mais que qualquer distribuidor ou outra livraria, seja de rede ou não. E essa diferença é significativa também no número de exemplares, cuja ordem de grandeza chega aos mil. Como livro tem o preço de R$ 79,00, a diferença de faturamento entre os outros e ela foi de R$ 7.900,00 para R$ 79.000,00. Coincidência ou não (a escolha é de você, leitor) essa livraria opta por comprar seu acervo. Se o acervo é comprado, o responsável pela compra sabe, assim como os vendedores da livraria, que essa mercadoria deve ser vendida dentro de um prazo X, pois precisa ser paga à editora ou distribuidora. Essa equipe de compra e vendas soube reconhecer uma oportunidade de venda diferenciada de um livro que não era uma novidade, de um livro que está em catálogo há mais de um século. É, portanto, uma equipe antenada com o que acontece para além do ambiente físico da livraria.

Problema 2-acervo sem foco: com a consignação é comum as livrarias aceitarem todo e qualquer título que as editoras e distribuidoras queiram enviar, pois, como não é comprado, acham que não tem custo. Será? Lembro do meu tempo de livraria quando algumas editoras e distribuidoras insistiam em enviar títulos de áreas que a livraria não trabalhava. Eles insistiam dizendo "mas é consignado, não tem custo". Tem sim, e muito. O primeiro custo é o administrativo/burocrático: recebimento da mercadoria; manuseio; conferência; entrada no sistema; distribuição pela loja. Depois, como o livro não venderá, vem a devolução para a editora ou distribuidora: retirar da prateleira; conferência; emissão de nota fiscal; embalar; solicitar a coleta; entregar a mercadoria. Quantas horas desperdiçadas com trabalho inútil. Um outro custo é a perda de faturamento. Como esses títulos que não têm a ver com o acervo da livraria estão na loja, acabam ocupando lugar nas prateleiras e nas mesas de exposição de lançamentos e destaques, tirando assim o espaço de títulos mais de acordo com o público da livraria. Muitas vezes vejo livrarias entulhadas de livros, mas sem foco no acervo. Não adianta uma livraria - principalmente a pequena e média, até pelo espaço físico disponível - querer ter de tudo um pouco, pois acaba não tendo nada que a diferencie nem no mercado e nem aos olhos de seus clientes.

Solução 2-especialização: para conseguir ser uma livraria de referência é necessário que as pessoas responsáveis pelas pedidos, sejam de compra e/ou consignação, conheçam os catálogos das editoras e seus perfis editoriais, além da relevância dos autores. Devem ter acesso também às informações de vendas da livraria para realizar análises e poder fazer os pedidos subsidiados por essas informações.

Problema 3-atraso na profissionalização do setor: a consignação leva a não se exigir muito dos funcionários o conhecimento do produto, no caso o livro, que devem vender. E isso vale para os três setores, editora, distribuidora, livraria.

Solução 3-ler e estudar: sei que grande parte das pessoas - se não a maioria -, que trabalham nas áreas de compra e/ou venda de editoras, distribuidoras e livrarias não têm o hábito da leitura. Também sei que é difícil que de uma hora pra outra passem a ser leitores. Mas, tenho certeza que, sem o hábito da leitura e consequente estudo, não há como crescer na profissão, ter emprego garantido e ter melhores salários.

A escolha é de cada um e boas leituras.

De como chegamos a este estado de coisas

  Em 11 de janeiro de 2020 foi registrada, na China, a primeira morte por Covid-19. A população mundial hoje está na ordem dos 7,8 bilhõ...