domingo, 14 de março de 2010

Indicações #5 Eu Sou o Último Judeu

Muito já foi escrito e filmado sobre a 2ª Guerra Mundial e o Holocausto. Mesmo assim, vez por outra, aparece algo novo. No caso, refiro-me ao livro "Eu Sou o Último Judeu: Treblinka, 1942-1943", publicado pela Zahar. Se algum escritor de ficção ou algum roteirista de cinema tentasse imaginar, descrever, criar Treblinka, creio que não conseguiria. A realidade que foi Treblinka é esmagadora, inimaginável para os padrões mínimos de civilização e, em vários momentos, pensei em parar a leitura; mas, vale a pena ir em frente e terminar o livro.

O primeiro ponto a esclarecer é a diferença entre campo de concentração e campo de extermínio.
Concentração: sistema de encarceramento dos vários "inimigos" do Estado nazista, tais como judeus, comunistas, homossexuais, ciganos etc. Estas pessoas eram obrigadas a trabalhos forçados em prol de várias empresas alemãs, e milhares morreram nesses campos.
Extermínio: o objetivo único era matar, exterminar, principalmente os judeus.


A história narrada por Chil Rajchman passa-se na Polônia ocupada pelo exército nazista. O campo de Treblinka foi implantado em junho de 1942, a aproximadamente 100 Km a nordeste de Varsóvia, a capital. Rajchman chegou a Treblinka em outubro de 1942; sobreviveu, de forma inesperada, por 10 meses, até fugir em 2 de agosto de 1943, após a insurreição da qual foi um dos líderes. Passou dois meses fugindo dos nazistas, de esconderijo em esconderijo, até chegar a Varsóvia onde ficou escondido num bunker, durante mais três meses e meio até a libertação, em 17 de janeiro de 1945, pelo Exército Vermelho.

Uma diferença fundamental do relato de Chil Rajchman para outros existentes sobre o Holocausto, é que ele foi escrito ainda em plena guerra, quando o autor ainda corria risco de morte, escondido em Varsóvia. Foi escrito em íidiche num pequeno caderno que ficou inédito até a publicação em livro, na França, em 2009. Chil Meyer Rajchman faleceu em 2004, aos 90 anos de idade, em Montevidéu, Uruguai, para onde tinha emigrado após a libertação.

No prefácio deste livro, Annette Wieviorka, Diretora de Pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, destaca que:
"Este texto pertence a uma categoria de escritos reduzida e bastante particular: a daqueles redigidos na sombra trazida pela morte, antes do fim da guerra, para preservar o rastro de acontecimentos que desafiam a imaginação."

Dois outros textos deste gênero chegaram até nós: o de Calel Perechodnik e o de Simha Guterman. Ambos morreram na insurreição de Varsóvia. Ainda citando Annette Wieviorka:
"Nesses três textos, os autores ofuscam-se diante do que pretendem descrever. A violência, a crueza do relato, a falta de indulgência ou de mascaramento sobre o que eles fizeram só se explicam pela incerteza sobre sua própria sobrevivência. Os fatos que eles descrevem prevalecem sobre o desejo de construir uma imagem de si ou de suscitar simpatia ou compaixão.
[...]
A acuidade e crueza da descrição e a violência de um relato livre do estereótipo que às vezes encontramos nos testemunhos a posteriori dos sobreviventes deveriam pôr este livro [Eu Sou o Último Judeu] no cânone dos grandes textos da literatura do desastre."

Treblinka foi concebido de maneira profissional. No relato de Chil Rajchman:
"À primeira vista, poderíamos julgar tratar-se de uma estação ferroviária comum. A plataforma é suficientemente comprida para receber um trem normal, com até 40 vagões. A alguns metros da plataforma, dois galpões, um defronte do outro. No da direita, estoca-se a comida que as pessoas trouxeram em suas bagagens [as pessoas podiam levar cerca de 50 Kg de bagagem, pois pensavam que era uma mudança para campos de trabalho]. No da esquerda, as mulheres e crianças deixam suas roupas. [...]

À esquerda da plataforma, há algumas construções de madeira, entre as quais a cozinha e as oficinas. Em frente, os dormitórios. O galpão dos SS não fica longe. É equipado com todo o conforto. À direita da plataforma, o vasto espaço reservado ao empilhamento das peças de vestuário: calçados, roupas, lenços, cobertores etc. Detentos fazem a triagem das roupas e as armazenam num lugar separado para serem expedidas para a Alemanha.

O acesso às câmaras de gás começa em frente à plataforma onde estão os dormitórios. É conhecido como Schlauch [passarela]. Plantado com arbustos, lembra uma aleia de um parque público. As pessoas que o percorrem são obrigadas a correr, nuas. Ninguém retorna. São violentamente espancadas e espetadas a golpes de cassetete e baioneta, de modo que, depois que passam, esse corredor de areia branca cobre-se de sangue."

Nota: a passarela, Schlauch, apelidada pelos nazistas de "himmelfahrstrasse" (caminho do céu), é uma passagem em ângulo reto que desemboca nas câmaras de gás. Esse traçado tinha como objetivo ocultar, o máximo de tempo possível, a fim de evitar qualquer revolta, as instalações destinadas ao assassinato.


legendas
23 plataforma de chegada dos trens

24 depósitos de roupas e bagagens camuflados como estação
the tube: "o schlauch" caminho de acesso às câmaras de gás
32 e 33 câmaras de gás
34 valas de enterro coletivo
35 fogueiras para incineração de cadáveres

Voltando ao relato de Rajchaman. "Uma brigada especial, a brigada do Schlauch, [composta por judeus], intervém após cada comboio para limpá-la e espalhar areia limpa e fina a fim de que as vítimas recém-desembarcadas não percebam nada.
[...]
A câmara de gás mede 7mX7m. No meio do recinto há orifícios de chuveiro, pelos quais o gás chega. Um tubo corre ao longo de uma parede para sugar o ar. O prédio comporta dez câmaras de gás como essa. Um pouco adiante, uma construção menor abriga outras três."

Nota: o monóxido de carbono era o gás utilizado em Teblinka; era produzido por um motor a diesel proveniente de um tanque soviético recuperado pelos nazistas.

Até 15 de dezembro de 1942 os comboios chegaram regularmente com cerca de 10 mil pessoas por dia, que eram assassinadas em questão de horas. Todo o trabalho de separar as roupas, os objetos, comida, ouro, jóias e dinheiro que os judeus traziam nas suas bagagens, cortar os cabelos das mulheres e guardá-los, limpar as câmaras de gás, retirar os corpos assassinados, transportar esses corpos, arrancar os dentes com obturações, enterrar esses corpos em grandes valas comuns etc, etc era feito por algumas centenas de judeus selecionados ao acaso. Parte dessas equipes de trabalho era trocada diariamente, isto é, essas pessoas também eram assassinadas, e substituídas por outras egressas dos próximos comboios, para evitar que existisse comunicação entre os que já estavam em Treblinka e os que diariamente chegavam.

Além da vontade de sobreviver, Chil Rajchman também contou com o acaso. "No início, era muito raro que os detentos se conhecessem entre si, pois diariamente recém-chegados substituíam os que haviam sido eliminados. Depois, como o trabalho não avançava suficientemente rápido em virtude da inexperiência dos novatos, os assassinos mudaram de tática."

Em dezembro de 1942, fogueiras são instaladas para queimar os cadáveres. "Não compreendíamos por que buscavam um meio de queimar as pessoas que eles tinham asfixiado com gás. [...] Soubemos a razão disso por acaso: um dos assassinos nos trouxe um pedaço de pão enrolado num jornal. Uma das reporagens dizia que o exército alemão descobrira um cemitério clandestino contendo milhares de corpos de oficiais poloneses, que pareciam ter sido mortos pelos soviéticos. Era a razão pela qual eles queriam queimar os cadáveres, a fim de que não restasse vestígio de seus excessos."

Nota: em abril de 1943 a rádio alemã anuncia a descoberta de 4 mil cadáveres de oficiais poloneses na floresta de Katyn, perto de Smolensk, assassinados pelo Exército Vermelho. A URSS contesta a acusação, objeto de uma polêmica internacional ao longo de toda a Guerra Fria. Apenas em 1990 Mikhail Gorbatchev irá finalmente admitir a responsabilidade soviética.

O relato de Chil Rajchman é muitíssimo mais impactante que esta simples resenha; não citei passagens cuja leitura, certamente, perturbará quem o ler. Estima-se que entre 750 e 900 mil pessoas foram assassinadas em Treblinka. Apenas 57 sobreviveram, sendo Chil Rajchamn uma delas.

Pra terminar, cito da orelha do livro: "o ritmo acelerado, a frieza e a objetividade dos trabalhos forçados refletem-se no texto de Rajchman. Talvez consciente de que o mais importante era registrar o que vivera e sabia, seu relato jorra num impulso, praticamente sem emitir opiniões ou buscar efeitos narrativos. Mas o impacto sobre o leitor é atroz."

5 comentários:

Anônimo disse...

Bom dia!!

Gerencio um blog, o www.nobelassis.blogspot.com e gostaria de saber como incluir a assinatura pelo email do blog, como você fez com o seu, no topo do blog, para que quem quiser receba no email as atualizações.

parabéns pelo seu blog!!!Nós acompanhamos sempre!!

Um abraço,

Nathália

Jaime Mendes disse...

Olá Nathália,

segue link do Ferramentas Blog que ensina como fazer.

http://www.ferramentasblog.com/2009/01/criar-newsletter-para-blog.html

abraço
jaime

Paulinha disse...

ah, agora que vou correndo comprar o livo! Já tinha me emocionado com Diário de Anne Frank e com a Guerra de Clara (http://cantinhodaleitura-paulinha.blogspot.com/2009_03_01_archive.html).
abs!
@aninha_p

Unknown disse...

Nossa quero ler esse também!!
Aproveito para deixar aqui algumas dicas:
- Holocauto, de Gerald Green
- A noite, de Elie Wiesel
- Shoah Vozes e faces do Holocausto, de Claude Lanzmann(maravilhoso!!!!!!!!!)
- Treblinka, de Jean-François Steiner.

E não deixem de assistir o filme "Marcas da Guerra", simplesmente espetacular!
Parece a história do nosso único brasileiro sobrevivente do Holocauto, Andor Stern, que eu tive o enorme prazer de conhecer recentemente.Um homem especial que com 81 anos não perdeu o prazer de viver e tentar ser feliz após conhecer o horror dos campos.
Suzete.

Miriam Vervloet disse...

Li recentemente "Eu sou o último judeu".Embora fininho e com uma linguagem bem simples,é o mais forte que li sobre o holocausto.
Também recomendo "A bibliotecária de Auschwitz"," O menino da lista de Schindler","Os colegas de Anne Frank","A história de Irena Sendler a mãe das crianças do holocausto" e "Depois de Auschwitz".

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