quinta-feira, 18 de junho de 2020

De como chegamos a este estado de coisas


 Em 11 de janeiro de 2020 foi registrada, na China, a primeira morte por Covid-19.
A população mundial hoje está na ordem dos 7,8 bilhões de pessoas. Há 100 anos a população era de 1,8 bilhões e no início da 2ª Guerra Mundial (1939) era de 2,3 bilhões de pessoas.

Os dados anteriores são apenas para comparar com os a seguir, para termos noção da ordem de grandeza da situação em que nos encontramos. Neste mês de abril existem cerca de 4 bilhões de pessoas (52%) obrigadas ou incentivadas pelos governos de seus países a ficaram confinadas em suas casas, segundo levantamento da Agência France Press divulgado dia 07/4/2020.

Entre a metade de março e a metade de abril, 22 milhões de pessoas nos USA solicitaram o seguro desemprego. No Brasil o desemprego pode atingir o acumulado de 17 milhões de pessoas no final de abril, contra os 12 milhões no fim de Fevereiro, segundo o IBGE. Em Portugal, um milhão de pessoas estão em lay-off, o que ainda não é o desemprego, mas é uma perda de 1/3 nos rendimentos dos trabalhadores. A taxa de desemprego estava em 6,5% ao fim de fevereiro e passou para 8,9% no fechamento de março. Em Portugal, são agora 344 mil trabalhadores desempregados no total.

Com estes dados a economia mundial despencou. E o mercado do livro não é imune a isso. No Brasil, a queda do faturamento está em 47,47% na semana de número 15 do ano, segundo a Nielsen. Em Portugal, segundo dados da GFK para a mesma semana 15 (de 6/4 a 12/4), a queda de faturamento nas livrarias já está em 84% na comparação com ano anterior. Em Portugal as livrarias vão reabrir agora em 04 de maio com a limitação de uma pessoa para cada 20 m2. Os shoppings (centros comerciais) permanecem fechados até 31 de maio.

O mercado do livro está numa situação de UTI / cuidados intensivos, tanto no Brasil quanto em Portugal, para ficar somente nestes dois países. 

Entretanto, é necessário ter claro que o vírus da Covid-19 só potencializou uma situação de fragilidade que já existia no mercado do livro. Não querer ver isso, é tal qual na história de Andersen, “A roupa nova do Imperador”, onde o Rei estava nu. E essa fragilidade, no Brasil, veio sendo construída ao longo de 4 décadas, pelo menos, desde os anos 1980 do século passado.

Assim, para primeiro sobreviver a esta crise e, depois, seguir em frente, é fundamental levantar dados e analisá-los. Sugiro três etapas:

1 - caracterizar a situação atual;
2 - entender como se chegou a esta situação;
3 - propostas para fazer diferente e seguir em frente.


1 - SITUAÇÃO ATUAL: FRAGILIDADE.

No Brasil, em 2018, o mercado do livro foi pego de surpresa com os processos de Recuperação Judicial da Saraiva, Cultura e Bookpartners, sendo que, esta última, já teve a falência decretada em 09/03/2020 (ver aqui no PN). Com isso, ficou escancarada a concentração da venda e a consequente situação de dependência, que anda de mãos dadas com a fragilidade. De um mês para o outro, a quase totalidade das editoras perdeu entre 40% e 60% do faturamento que estes 3; sim, um, dois, três clientes representavam. Mas, a surpresa da RJ não pode explicar, por si só, o momento atual.

Aliás, sem surpresas, a concentração da venda continua, mas está mudando de endereço. Em 08 de novembro de 2017, em um artigo aqui no PublishNews escrevi:

A Amazon vai ter uma participação significativa no mercado do livro no Brasil? SIM.
Ao final de 2018 será o 1º ou 2º cliente de todas as editoras e distribuidores que fornecem diretamente para ela.”

O outro ponto da fragilidade é com relação aos descontos exigidos pelos maiores clientes em faturamento, sejam livrarias ou não. Depois pelos descontos que esses clientes oferecem nos seus e-commerces e, na outra ponta, pelos descontos praticados pelas editoras diretamente ao leitor em seus sites. Tudo isso contribui para, a cada ano, a cada mês, a cada dia, diminuir o tamanho do mercado em pontos de venda, tanto para as editoras quanto para o leitor. Qualquer mercado que tem seus pés fincados no desconto, e não na margem para o negócio, não tem futuro. A diminuição dos pontos de venda, com o crescente fechamento de livrarias, também vai afetar as editoras, principalmente as que têm menor capacidade (caixa) para publicar. Com isso, a oferta de variedade editorial, a bibliodiversidade, vai diminuir e as ideias, principalmente as não hegemônicas, terão menor possibilidade de circular. Uma sociedade democrática precisa da diversidade de ideias para existir.

No meio desta pandemia os descontos praticados por editoras, pequenas e grandes em faturamento, e por sites de varejo, de livrarias ou não, chegam aos 50%. Mesmo em Portugal, onde existe a Lei do Preço Fixo, sempre há um jeito de contornar e está acontecendo também. Este exagero pode ser explicado, um pouco, pelo momento de desespero que se vive agora, em que cada um só consegue pensar em soluções individuais e nas contas que tem para pagar amanhã. Mas, será sustentável? Durante quanto tempo se terá fôlego para manter essas práticas?


2 - SOBRE COMO CHEGAMOS À ATUAL SITUAÇÃO.

Como aconteceu essa concentração? Quando comecei no livro, em 1981, os descontos das editoras para as livrarias eram de 30% e 35%. Em alguns poucos casos chegava-se aos 40%. Hoje os descontos começam em 40% (salvo raras exceções de 35% em alguns segmentos dentro dos livros CTP, os Científicos, Técnicos e Profissionais) e vão até os 65%, pelo menos. Os livros didáticos de ensino fundamental e médio não entram nesta análise.

Temos um passado de vivência e sobrevivência a inflações altíssimas. E isso deixa marcas na cultura, nas mentalidades e nos negócios também. E o histórico cultural, as mentalidades, não se mudam por decreto. Por exemplo, as negociações de desconto entre editoras e distribuidores e livrarias não são de um em um, mas de cinco em cinco pontos percentuais. Já ouvi em muita negociação comercial o cliente dizer que só tinha 40% de desconto. E eu tinha que mostrar que isso lhe proporcionava 66,67% de margem bruta de retorno. Assim como 50% de desconto é 100% de retorno, e 65% de desconto são imorais 185,71% de retorno.

Voltando à inflação. Decorrente do grande endividamento externo realizado durante os governos do período da Ditadura Militar, a inflação pulou dos mais de 200% ao ano em 1985, chegando aos quase 2.000% no governo Sarney (1985-1990), aos 1.119% no governo Collor (1990-1992) e a inacreditáveis quase 2.500% no governo Itamar (1993-1994). Algo tinha que ser feito e veio, então, o Plano Real.

Como era o negócio do livro nessa época? No início dos anos 1990 se ganhava mais dinheiro com a especulação em cima da inflação do que com o resultado do trabalho. E o overnight era o meio para tal. As editoras, assim como todos os negócios, foram obrigadas a reajustar os preços mensalmente pelo índice da inflação. Foi a época em que as grandes livrarias e os distribuidores mais ganharam. Dia 30 de um mês se compravam, por exemplo, 500 exemplares do Alquimista (Paulo Coelho) a CR$ 100,00 (cruzeiro real era a moeda) de preço de capa. Se a inflação do mês tivesse sido de 40%, um ou dois dias depois, apenas no trajeto do depósito da editora para os distribuidores e livrarias, estes já teriam ganho mais Cr$ 40,00, pois o novo preço de capa já seria CR$ 140,00. A seguir, existia o interesse que o leitor pagasse o livro à vista, isto é, somente em dinheiro, e para tal, dava-se um desconto. O dinheiro dessas vendas depois era aplicado diariamente no overnight. Assim, foi-se construindo essa prática nefasta de desconto no livro.

Como a inflação crescia a cada mês, as editoras tiveram que passar a fazer reajustes quinzenais, depois semanais, até passarem a reajustes diários. Na sexta-feira de cada semana as livrarias recebiam uma lista das editoras com os preços para cada dia da semana seguinte. Em seguida cada editora chegou a ter uma “moeda” fictícia própria, cuja quantidade era multiplicada pelo valor da URV (Unidade Real de Valor), instituída em fevereiro de 1994. O valor da URV era diariamente determinado pelo governo. Em julho desse mesmo ano, mudou-se mais uma vez a moeda no Brasil e foi instituído o atual Real (R$). Um Real começou valendo uma URV ou os equivalentes CR$ 2.750,00 (cruzeiros reais), que foi a cotação do dia anterior. A URV deixou de existir a partir de então. Dali pra frente era simplesmente Real (R$). Também houve a paridade cambial e um dólar valia um real. Foi verdade! Mas isso, já ficou na “história”.

Uma mudança tão radical assim é difícil de ser assimilada com rapidez nos negócios. Quem estava acostumado a ganhar dinheiro com a especulação e não conseguiu se adaptar rapidamente, foi tendo dificuldades e, alguns distribuidores acabaram por fechar nos anos seguintes. A maior rede de livrarias da época, a Siciliano, achou outra forma de se adaptar à nova realidade. Qual foi? Exigir mais desconto das editoras, principalmente daquelas que tinham best-sellers e, portanto, dependiam da Siciliano para distribuir os livros em “pilhas” pelas lojas, pois algumas já eram nos shoppings. Uma editora cedeu à pressão e, na sequência, outras tiveram que acompanhar. E, assim, foi quebrada a barreira dos 50% de desconto que, até hoje, não retrocedeu a esse patamar.

Com a estabilidade da economia sempre existe investimento e surgem mais negócios. Em maio de 1996 a Livraria Saraiva inaugura a 1ª megastore no Brasil, no shopping Eldorado em São Paulo. Em junho de 1997 é a vez do Rio de Janeiro com a mega da Rua do Ouvidor. Era a grande novidade da época. Nas palavras do então diretor-superintendente da empresa, José Luiz Próspero:

"A Saraiva vem namorando esse conceito de megastore há mais de oito anos. Essa tendência é muito forte nos EUA e, em São Paulo, está dando muito certo".

Também em 1997 é inaugurado o Ática Shopping Cultural, no bairro de Pinheiros em São Paulo. O mercado crescia e atraiu a atenção externa. Em julho de 1998 a rede francesa Fnac compra o Ática Shopping e vai reinaugurá-lo com o nome Fnac em 01/06/1999. Nasceu com uma estratégia de negócios bem definida. Nas palavras de Pierre Courty, diretor-geral da empresa no Brasil "Os produtos nacionais serão, com certeza, muito mais baratos aqui".

 Instituiu, assim, o “Preço Verde”, um selo adesivo que era colado nos livros, CDs e DVDs, e que dava 20% de desconto nos primeiros 30 dias de lançamento (chegada) desses produtos em loja. O que era, e ainda é proibido na França. As outras livrarias, principalmente as maiores, optaram por acompanhar a Fnac nessa estratégia, e começaram a dar descontos também. Para preservarem sua margem, começaram a exigir mais descontos das editoras que, mais uma vez, na sua grande maioria, cedeu.
  
Ainda em 1999, em novembro, com vistas a pegar a época do Natal, é lançado com grande divulgação, com uso de out-doors e propaganda na TV aberta, o site do Submarino. Mais uma vez a estratégia de negócio era centrada no desconto. Desta vez muito agressivo, superior a 30%, tanto que muitos livreiros ligaram para as editoras reclamando. Para saber mais sobre a estratégia de venda de grandes varejistas apoiada no desconto, ver este artigo aqui no Publishnews.

Se até aqui o foco foi o desconto, a outra variável que ajudou a chegar à situação atual, foi a concentração. Tanto de livrarias quanto de editoras, sendo que estas últimas, até pelo gigantismo, foram ficando cada vez mais reféns das redes de livrarias, por mais contraditório que isso possa parecer.

Com o Plano Real a inflação foi contida. Nos governos de FHC (1995-2002) variou entre 1,65% (1998) e 12,53% (2002). Não considerei o ano de 1995, o primeiro após a implementação do Real, no qual se baixou a inflação de 916,43% (1994) para 22,41% (1995). Nos governos de Lula (2003-2010), a variação ficou entre 3,14% (2006) e 9,30% (2003). Esta relativa ao ano seguinte ao último ano de FHC (2002).

Este cenário de estabilidade estimulou a expansão das livrarias, com a ajuda de financiamentos do BNDES. Propiciou também a entrada de editoras estrangeiras para atuação direta no mercado brasileiro. E as maiores editoras nacionais começaram a comprar editoras menores por oportunidade de negócio, mas também para se defenderem da entrada das estrangeiras. Tudo isto aconteceu essencialmente entre 2000 e 2010, com uma ou outra aquisição em 2011.


2.1 - EXPANSÃO DAS LIVRARIAS.

A primeira importante expansão é a da Livraria Cultura para além das fronteiras de São Paulo. Em 2003 inaugura a loja em Porto Alegre, que logo vira a 2ª loja em faturamento do grupo. Em 2004 abre a loja de Recife. E prossegue abrindo lojas a cada ano.

A Fnac também já vinha expandindo. Tinha aberto em 2001 a loja no Rio de Janeiro. Ainda existia a Laselva que tinha participação importante no mercado com as lojas nos aeroportos. Um parêntesis: a Laselva, em Recuperação Judicial desde maio de 2013, teve a falência decretada em 05/03/2018, noticiou o PN.

Mas, o marco divisório da concentração nas livrarias acontece em 06/03/2008, quando a Saraiva compra a Siciliano, a maior rede até então. Às 36 lojas da Saraiva vão somar-se as 63 da Siciliano criando-se, assim, um gigante do varejo de livros com 99 lojas distribuídas por 13 estados (SP; RJ; MG; ES; PR; SC; RS; GO; BA; PE; PB; RN; CE) além do Distrito Federal.

E esta aquisição traz mais um custo para as editoras e uma imensa vantagem competitiva para a Saraiva no mercado. Via de regra, a Siciliano tinha descontos entre 5% e 10% (conseguidos no pós-Plano Real, como já mencionado) maiores do que a Saraiva. Com a aquisição, a Saraiva forçou para manter as condições que a Siciliano tinha, e acabou por conseguir isso das editoras, salvo raríssimas exceções.

Era acirrada a disputa para abertura de novas lojas, principalmente em shoppings. As negociações eram longas e feitas com muita antecedência antes da abertura efetiva de uma loja. Em 2011 existiam 430 shoppings no país por onde circulavam mensalmente 376 milhões de pessoas. O Brasil tinha então 191 milhões de habitantes. Impressiona, não?

Como resultado dessa corrida, na metade de 2012 a situação das principais redes de livrarias, em número de lojas, era a seguinte:

100 lojas, tinha a Saraiva. Base São Paulo;
32 lojas, tinha a Livraria Leitura. Base Minas Gerais;
20 lojas, tinha a Livrarias Curitiba. Base Paraná;
13 lojas, tinha a Livraria Cultura. Base São Paulo;
11 lojas, tinha a Fnac. Base São Paulo;
7 lojas, tinha a Livraria da Travessa. Base Rio de Janeiro;
6 lojas, tinha a Livraria da Vila. Base São Paulo.
Obs: não considerei a Nobel como rede pois as lojas não têm uma administração centralizada. As lojas são franquias e a negociação com as editoras é individualizada.


2.2 - ENTRADA DAS EDITORAS ESTRANGEIRAS PARA ATUAÇÃO DIRETA NO PAÍS.

Segue uma rápida cronologia:

Grupo Pearson (Inglaterra) entrou no mercado em 1996 e comprou a editora Makron Books no ano 2000.

Grupo Vivendi (França), em parceria com o grupo Abril, comprou as editoras Ática e Scipione em 1999. Saiu do Brasil em 2004 e o grupo Abril comprou a sua parte.

Grupo Prisa-Santillana (Espanha) entrou no mercado em 2001 com a compra das editoras Moderna e Salamandra. Em 2005 comprou 75% da editora Objetiva.

Elsevier (Holanda) chegou em 1976 no mercado nacional em parceria com a editora Campus. Suas compras foram as seguintes:
2002 a editora Alegro
2002 a editora Negócio
2005 a editora Impetus

A Larousse (França) chegou em 2003.

Grupo Planeta (Espanha) chegou em 2003. Em 2006 comprou a editora Academia da Inteligência.

Edições SM (Espanha) chegou em 2004.

Almedina (Portugal) chegou em 2005.

Penguin Books (USA) em 2005 fez uma joint-venture com a Companhia das Letras e, em 2011, comprou 45% do capital dessa editora.

Grupo Leya (Portugal) chegou em 2009. Em 2010 fez uma parceria com a editora Barba Negra. Em 2011 comprou a editora Casa da Palavra.

Thomson Reuters (USA) em 2010 comprou a editora Revista dos Tribunais.

2.3 - E AS EDITORAS NACIONAIS TAMBÉM FORAM ÀS COMPRAS.
Mais uma rápida cronologia:

A Guanabara Koogan comprou editoras nos seguintes anos:
1994 a LTC
2007 a Forense
2007 a Método
2008 a Santos
2010 a Forense Universitária
2011 a EPU
2011 a Roca
2011 a AC Farmacêutica
Todas essas editoras estão sob a holding GEN | Grupo Editorial Nacional criada em 2007.

A Record também foi às compras e fez as seguintes aquisições editoriais:
1997 a Bertrand Brasil
1997 a Civilização Brasileira
1997 a Difel
2001 a José Olympio
2004 a Best-Seller
2005 joint-venture com a canadense Harlequim Books
2010 a Verus

A Saraiva comprou editoras nos anos de:
1998 a Atual
2000 a Renascer
2001 a Solução
2003 a Formato
Com a compra da Siciliano vieram também as editoras:
2008 a ARX
2008 a ARX Jovem
2008 a Futura
2008 a Caramelo

A Ediouro comprou editoras nos anos:
2002 a Agir
2004 a Relume-Dumará
2005 e 2007 a Nova Fronteira
2006 parceria com a Thomas Nelson
2007 a Nova Aguilar
2008 a Desiderata

A Sextante fez uma compra diferente. Tem inteligência de negócio aqui.
2007 a Intrínseca (apenas 50%)

A Artmed (atual Grupo a) comprou em:
2009 a McGraw-Hill Education no Brasil

A IBEP/Companhia Editora Nacional comprou em:
2010 a Conrad

Tanta movimentação no mercado só poderia gerar uma produção elevada. A pesquisa da Fipe, contratada pela CBL e SNEL, apresenta os seguintes números para o ano de 2011:

20.406 novos ISBN publicados. Se divididos pelos 249 dias úteis do ano, seria uma média de 82 novos livros por dia. Onde e como colocar tantos livros nas livrarias?

304 milhões de exs produzidos para mercado (exclui governo).

284 milhões de exs vendidos no mercado.

Portanto, sobra de 20 milhões de exemplares só neste ano. Não esquecer dos exemplares que vêm sobrando de cada ano anterior. Logo, há muitos milhões de exemplares nos estoques das editoras. Isso tem custo!

Voltando à pergunta “Onde e como colocar tantos livros, e quais livros, nas livrarias?” Como isso foi fragilizando o mercado e acentuando a concentração?

Com a predominância das livrarias de rede nos shoppings, grandes concentradores de fluxo de pessoas como visto, e com o espaço físico finito nas lojas, as já mencionadas redes, sem exceção, viram que poderiam monetizar o espaço de exposição. E começaram a vender de forma direta ou disfarçada, via participação em encartes promocionais, o espaço nas lojas. Os nomes dados a esses espaços lembram os utilizados pelos supermercados: gôndola, ponta de gôndola, linha de caixas, mesa, ilha, ilha central etc. Também se adesivava o chão e a vitrine, além de banners, totens e displays espalhados pelas lojas. Em algumas delas existiam aparelhos de TV reproduzindo imagens relativas aos livros selecionados. Isso sem falar das “pilhas” de livros. Acreditava-se (continuam?) que as “pilhas” vendiam o livro por si só.

As grandes editoras supra citadas, principalmente as da linha de Obras Gerais, na classificação da pesquisa da Fipe, eram o foco dessas ações. Como existia a lógica de publicar muito para aumentar as chances de se criar / achar um best-seller, a disputa entre elas era acirrada por esses espaços de exposição. Com isso ficavam em desvantagem nas negociações com as redes. O objetivo final era conseguir fazer com que determinados livros chegassem às listas de mais vendidos. Na época, a lista da Veja era a mais importante. Ela quase que determinava a exposição e as tiragens e reimpressões.

Existia ainda a premissa da novidade e a falácia de que, sem ela, não se venderiam livros. A definição de novidade era somente o que tinha sido publicado “ontem” e, não, o livro que o leitor ainda não tinha lido ou comprado. Lembro de uma vez, quando fazia a apresentação de alguns livros da Zahar para a equipe de vendas da Siciliano - numa das suas lojas -, ao falar da Trilogia Tebana, do Sófocles, uma pessoa me perguntou se esse livro vendia. Respondi com a verdade: sim. Vendia e vende há mais de 2.500 anos!

A cada ano esse esforço das editoras para vender milhares de exemplares, mas de poucos títulos e que, por necessidade, que essa venda acontecesse nas redes para entrar nas listas de mais vendidos, (eram as redes que forneciam os números das vendas para a elaboração das listas), acabou minando, pouco a pouco, a venda desses best-sellers nas livrarias menores em espaço físico e que, além disso, também tinham menores descontos. Queda nas vendas, e margem menor nos produtos, levou ao fechamento anual de pequenas livrarias por todo o país, como demonstra pesquisa do IBGE divulgada aqui no Publishnews:

Em 2001, 2.374 municípios brasileiros (42,7% do total) contavam com pelo menos uma livraria. Em 2018, apenas 985 dos 5.570 municípios brasileiros (17,7%) tinham esse tipo de estabelecimento.


 Porém, é importante registrar que essas livrarias menores em espaço físico, sempre com raras exceções é claro, quase nada fizeram para mudar esse cenário. O que sempre ouvi, na função de gerente/diretor comercial de editoras era, em primeiro lugar, pedidos de mais desconto para a livraria e, depois, a reclamação de que a internet estava tirando o público das livrarias assim como a venda com descontos elevados. E só.

Por experiência própria, sei que é possível fazer diferente. Atuei como livreiro entre 1992 e 1999, com loja na mesma rua da Argumento Leblon, no Rio de Janeiro, e ainda com a livraria Letras e Expressões a 200 m. Lojas próximas não são problema a priori. Cada uma tinha clientela fiel e clientes em comum também, pois cada uma tinha acervos diferentes. A fidelidade era ao acervo e ao atendimento, ao serviço prestado. Desconto não fideliza!

Mas isto é assunto para o próximo tópico:


3 – PROPOSTAS PARA FAZER DIFERENTE E SEGUIR EM FRENTE,

que fica para um próximo artigo, pois este já ficou longo.

As ideias expostas não representam as de quaisquer empresas ou instituições a que estou ou estive vinculado.

Publicado originalmente no Publishnews em 05/05/2020.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Boi de Piranha 2: o livro


Warren Buffett vendeu ações do Wal-Mart.
De 56 milhões de ações que tinha no fim de 2015, passou para apenas 1 milhão e 400 mil em fevereiro de 2017.
Mas o que isto tem a ver com o mercado do livro?
Tudo!

A estratégia de Buffett segue a realidade nos USA. No primeiro trimestre de 2017 foram fechadas 2.880 lojas físicas, contra 1.153 no mesmo período em 2016. A causa é o comércio online ou, se quiserem um nome, a Amazon, que em 2017 ficou com 44% das vendas do e-commerce segundo pesquisa da One Click Retail (fonte: Portal NOVAREJO).

No Brasil, em 2016, foram fechadas quase 109 mil lojas físicas, segundo a CNC – Confederação Nacional do Comércio.
E varejo, o que é?
Varejo é a atividade econômica da venda de um bem ou um serviço para o consumidor final, ou seja, uma transação entre um CNPJ e um CPF.

As vendas pelo e-commerce crescem a cada ano e, no Brasil, não é diferente. Pelos dados da E-bit, o faturamento foi de R$ 44,4 bilhões em 2016 e de R$ 47,7 bilhões em 2017. Desse faturamento o livro representou apenas 3,2% em 2016, ficando na 8ª posição.

Dados referentes a 2016:



Em 2017, em faturamento, o livro nem aparece entre os 10 primeiros, representando, portanto, menos de 2,2%.

Dados referentes a 2017:



Mas, se é tão pouco, por que dos 5 maiores varejistas do e-commerce, 4 vendem livros (não considerei a Privalia por somente fazer ações pontuais), e nenhum deles é um e-commerce que também tem livraria física?



É sempre bom lembrar que o primeiro produto a ser comercializado no e-commerce foi o livro, mais precisamente em 03/04/1995 na Amazon. O primeiro exemplar foi “Fluid Concepts and Creative Analogies: computer models of the fundamental mechanisms ot thought”, de Douglas Hofstadter. Um livro da categoria CTP (Científicos, Técnicos e Profissionais) sobre inteligência artificial e aprendizado de máquina. Profético, não?

Durante muitos anos, até 2009, o livro foi a categoria mais vendida em quantidade de pedidos no e-commerce no Brasil. Com o crescimento e amadurecimento deste mercado, ano após ano, vem sendo ultrapassado por outras categorias, mas ainda está entre as 10 mais.

Dados referentes a 2016:



Dados referentes a 2017:


 O ponto fundamental é que livro propicia conhecimento, certo? Mas, no e-commerce, o conhecimento buscado com avidez é de outro tipo. É conhecimento sobre o e-consumidor e, não exatamente, o conteúdo que está nos livros. Mas, como o livro ajuda nisso? Vamos lá...

Em 2013, depois de 32 anos trabalhando (em livraria e editoras) com livros de Humanas, Literatura e Literatura infantil e Infanto-Juvenil, entrei no segmento de livros CTP. Coincidiu com o lançamento de uma nova edição do principal título da editora: Sobotta-Atlas de Anatomia Humana em 3 vols. Preço de capa atual: R$ 883,00. E o que acontecia no e-commerce? Um dos principais players vendia esse livro com desconto maior do que o desconto que recebia da editora. Portanto, vendia com prejuízo! E isso, para mim, não fazia sentido.

Depois dos três primeiros meses de adaptação ao novo segmento, aprende-se a fazer algumas perguntas. Boas perguntas podem ser esclarecedoras.
Pergunta: Quem compra o livro Sobotta-Atlas de Anatomia Humana?
Resposta: Estudante de Medicina de 1º período, principalmente.
Se a pergunta fosse sobre quem compra o livro do Padre Marcelo Rossi, a resposta seria: milhões de pessoas, inclusive, possivelmente, um estudante de Medicina de 1° período.

Acontece que E-commerce precisa de segmentação máxima sobre quem compra. Por quê? Para poder sugerir, com grande grau de assertividade, produtos que possam interessar ao cliente. Sugestões equivocadas podem fazer com que o cliente clique no opt-out do e-mail marketing, por exemplo. E isso sai muito caro. Conquistar um cliente novo custa 10 vezes mais do que manter um.

E como as empresas que operam no e-commerce fazem essa segmentação?
Inicialmente pelo cadastro básico: nome, endereço completo com cidade e estado, além de CPF e e-mail, que são dados necessários para emissão de uma nota fiscal. Isso é comum a qualquer e-commerce. Além disso, dependendo da visão de negócio e da capacidade de processamento e análise de dados da empresa, ela pode pedir sua data de nascimento, seu gênero etc. Depois pelas compras do cliente, é claro, mas isso pode demorar meses ou anos. Mas tem uma informação que nenhuma empresa, por maior que seja, pede. Sabe qual é? Sua faixa de renda. Guarde isso.

Voltando ao livro Sobotta-Atlas de Anatomia Humana, a partir de uma única compra é possível deduzir, com alto grau de assertividade (o que não é 100%, é claro), o seguinte sobre o cliente:
1-tem alto poder aquisitivo. Salário mínimo é R$ 954,00; preço do livro R$ 883,00;
2-cliente tem entre 18 e 21 anos;
3-mora com os pais;
4-não trabalha, pois curso de Medicina é em horário integral;
5-tem até 10 anos de estudo pela frente: 6 do curso regular e até 4 de Residência Médica. São 10 anos comprando livros. Aluno de Medicina, via de regra, não abandona o curso;
6-se comprou um Sobotta, será potencial comprador do Moore-Anatomia Orientada para a Clínica, do Junqueira-Histologia Básica etc., etc.; isto é, permite indicar e saber a próxima compra;
7-ao se tornar um profissional vai continuar comprando livros, agora na sua área de especialização;
8-neste momento não é comprador de fogão, geladeira, eletrodomésticos, mesmo sendo produtos de ticket elevado. São os pais que compram, pois mora com eles;
9-mas já é potencial comprador do novo iPhone, do novo Moto, do novo Galaxy e seus acessórios;
10-é potencial comprador do novo notebook;
11-é potencial comprador de pacotes de viagens; etc.

Imagine-se que esse e-commerce tenha perdido R$ 88,00 com essa venda do Sobotta (10% do preço de capa). É um custo muito baixo para a quantidade de conhecimento que adquiriu sobre o cliente (e isso é muito mais do que simples informação), com uma única venda. E quanto esse cliente pode trazer de faturamento ao longo de um ano, ao longo de 10 anos?

Esse tipo de cliente é potencial consumidor de R$ 1.000,00 por mês, em média, no e-commerce. São R$ 12.000,00 no ano. Se esse e-commerce vender 1.000 exs do Sobotta por ano, pode trazer um faturamento de R$ 12 milhões por ano.
Quantas editoras faturam R$ 12 milhões por ano? Menos de uma centena.
Quantas livrarias faturam R$ 12 milhões por ano? Algumas dezenas.
Em 10 anos, só os compradores do Sobotta em um único ano, podem trazer um faturamento de R$ 120 milhões!

Portanto, vender livro, ficou estratégico para o varejo em geral. Não é mais somente uma questão de editora e livraria, de mercado editorial. O varejo vai cada vez mais para o canal do e-commerce e este será dominado pelos grandes Marketplaces.

Números comprobatórios?
Em 2016, dos 50 maiores grupos varejistas, 31 deles ou 62%, têm operação de e-commerce. E dos 10 maiores, 70% têm Marketplace. Se olharmos apenas para os 7 primeiros, 6 deles ou 86% têm Marketplace.

E o que é Marketplace? Basicamente uma plataforma de e-commerce onde vários varejistas podem vender, mediante o pagamento de uma comissão para o Marketplace. Portanto, não é necessário ter um site próprio para vender no e-commerce.

O primeiro Marketplace foi lançado em 1995, uma start-up do Vale do Silício fundada por Pierre Omidyar, e seu nome era Auction Web. Já ouviu esse nome antes? Não? E eBay? Então, são a mesma “pessoa”. A partir de 1997 o nome eBay passa a ser usado e está aí até hoje, como um dos gigantes do e-commerce. E este passou a ser o modelo de negócio perfeito, pois recebe uma comissão por cada venda, sem ter os custos de estoque e envio.

A Amazon inicialmente até seguiu o modelo do eBay, de venda por leilão, e lançou o Amazon Auction em 1999, como uma aba dentro do site da Amazon. Não deu certo, pois o eBay já tinha estabelecido o tráfego. Assim, aprendendo também com os erros, a Amazon lançou no ano 2000 seu Marketplace com a venda direta de produtos por diferentes varejistas. Começou também com o livro, desta vez o usado. Todas as ofertas de venda de um produto apareciam na mesma página desse produto da própria Amazon. Este formato da venda direta com preço, e não o leilão, prevaleceu e também já é o principal no eBay, há muito tempo.

Estava assim lançada a base que pode permitir que se concretize o discurso de Jeff Bezos em Março de 1999 na Association of American Publishers: “Não nos vemos como uma livraria nem como um loja de música. Queremos ser o lugar onde uma pessoa encontra e descobre tudo que quer comprar.” Citado por Brad Stone in A Loja de Tudo.

No Brasil o primeiro Marketplace foi o Mercado Livre, fundado em Agosto de 1999 na Argentina, e que aqui começou as operações em Outubro desse mesmo ano.

Voltando para o livro, das 70 maiores empresas de e-commerce, as 3 maiores são Marketplaces que também vendem livros. E, destas 70, 10 delas são Marketplaces. Com a Saraiva são 4 ou 40% dos Marketplaces que vendem livros.


Nos próximos anos a disputa vai ser acirrada no e-commerce e entre os Marketplaces. Nos que vendem livros, a disputa será entre (em ordem alfabética): Amazon; B2W (Americanas, Shoptime, Submarino); Buscapé; Cultura (Fnac, Estante Virtual); Magazine Luiza; Mercado Livre; Ricardo Eletro; Saraiva; Via Varejo (Casas Bahia, Extra, Ponto Frio); WalmartDestes 10 concorrentes, somente 3 ainda têm o livro como principal produto em faturamento: Amazon, Cultura e Saraiva.

Parece um cenário assustador, não? A concentração vai aumentar ainda mais. No segmento de livros CTP (Científicos, Técnicos e Profissionais) as livrarias físicas vão perder espaço muito rapidamente, a cada ano. Hoje, entre 50% e 60% do que é vendido para um cliente CPF já é via algum e-commerce.

Como vai ser para o segmento de livros de Interesse Geral, como Literatura? Acho que ainda existe um espaço maior para as livrarias físicas neste caso. Mas, certamente, não será para as que apostam as fichas em best-sellers. Esse tipo de livro será comprado no e-commerce. Qual será o modelo sobrevivente? Não sei, mas deixo uma pista: estudem a Blooks Livraria.

Para as editoras a concentração também não é boa, é claro. Entretanto, passou a existir uma variável interessante, que pode vir a evitar que fiquem reféns, se conseguirem pensar e agir mais a longo prazo, e não no imediatismo, como é usualmente feito.

Como o livro é “boi de piranha” para os grandes varejistas já mencionados, será muito arriscado para qualquer um deles, que compra direto de editora, exigir mais vantagens comerciais (desconto, prazo, devolução, frete, verba de marketing etc) e, caso não consigam, fazer alguma espécie de retaliação e não disponibilizar os best-sellers, por exemplo. E sabe por quê? Por dois motivos principais. Um: porque no e-commerce tráfego para o site é condição básica para faturamento. Livro proporciona isso, como já demonstrado. E dois: porque o concorrente de um grande varejista não é uma livraria e, sim, os outros gigantes do varejo, seus concorrentes diretos, que também vendem de tudo, inclusive livros.

Mais uma prova? É só lembrar que o faturamento de um único grande varejista, a B2W em 2016, foi de R$ 10 bilhões e, o faturamento de todo o mercado do livro (exceto governo), foi de R$ 4 bilhões, segundo a pesquisa FIPE. Portanto, fica alguma dúvida de que o livro não é o produto, não é o objetivo direto para o faturamento dos grandes varejistas?

Por outro lado, terão as editoras nervos de aço e/ou caixa para resistir e sobreviver neste momento de definição de cotas de mercado entre os gigantes? Ah, ainda falta chegar o chinês, o Alibaba Group...


Publicado originalmente no Publishnews em 24/04/2018

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Amazon e o “boi de piranha”



A Amazon iniciou seus negócios no Brasil em 06/12/2012 vendendo somente e-books. Em 21/08/2014, também numa jogada de marketing, na véspera da 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, começou a vender livros impressos. A terceira fase aconteceu em 12/04/2017 com a versão Market Place para a venda de livros usados, além dos novos. E, recentemente, em 18/10/2017 começou a vender eletrônicos, mas exclusivamente via Market Place.

Nas conversas e negociações que tenho com clientes e colegas de ofício do mercado do livro, em algum momento a Amazon sempre entra na pauta. E o tema específico, único, monolítico, verdadeira obsessão é... DESCONTO que a Amazon pratica.

Mas, por que alguém compra alguma coisa? Será que é pelo preço? É ele o determinante ou será que se compra algo para satisfazer uma necessidade, seja ela física ou psicológica? Lembram das lojas de R$ 1,99? Onde estão?

Para esta discussão sobre preço, desconto, valor, reproduzo algumas opiniões de pensadores e estudiosos:
Saul Kaplan diz que:
O preço é o elemento menos compreendido e mais mal implementado do mix de marketing. Quando você vê uma empresa depender excessivamente de descontos e incentivos para impulsionar suas vendas, é um sinal de alerta. A liderança pelo preço é, sem dúvida, um sinal de produto ou serviço não diferenciado. Muitas empresas de marketing e vendas abusam dos incentivos e descontos. Isso porque é mais fácil vender por um preço menor do que trabalhar para convencer os clientes do valor inerente a um preço mais elevado. Também é da natureza humana preferir vender por um preço mais baixo a correr o risco de perder uma venda. O problema é que o comportamento adepto da concessão de descontos transmite uma mensagem aos consumidores de que a oferta não vale o preço pedido. Desse modo, é inevitável que os clientes simplesmente esperem uma oferta melhor. A venda baseada no preço é como um vício. A partir do momento em que o comportamento adepto dos descontos invade uma empresa, trona-se difícil controlar o hábito”.

E Kaplan é contundente na forma de combater esse vício.
A partir do momento em que o vício do desconto passa a dominar uma empresa, somente um significativo esforço de reabilitação, normalmente com mudança de funcionários, pode reverter uma espiral descendente de preços”. pp. 52-53.

Para Michael Aun, “Uma clientela leal não é conquistada com descontos ou prêmios, e sim ao longo do tempo, com serviços e produtos de qualidade”. p. 65

O senso comum é que a prática de conceder descontos na venda de livros para o consumidor final começou com a Amazon, a partir de 1995. Será?

Corria o ano de 1977 quando a Crown Books foi fundada por Robert Haft. A estratégia de expansão foi dar descontos de até 40% nos best-sellers de capa dura. No Washington Post em 1979, na edição de domingo, os anúncios eram com Robert Haft sentado em grandes pilhas de livros com a legenda Books Cost Too Much, That's Why I Opened Crown Books. Now You'll Never Pay Full Price Again!”. Chegou a ter 247 lojas no auge, em 1993, e era a terceira rede de livrarias nos USA atrás da Barnes & Noble e da Borders, que também passaram a dar descontos. A partir de 1994, devido a uma disputa familiar, começou a decair e foi liquidada em 2001.

Como resultado dessa prática de descontos elevados, segundo dados da American Booksellers Association, “entre 1991 e 1997, a participação de livrarias independentes no mercado dos USA caiu de 33% para 17%. O número de associados também caiu de 4.500 para 3.300”. Stone, p.66.

1995, em retrospectiva, transformou-se num ano emblemático: início das vendas da Amazon nos USA e, no Brasil, início do site da Livraria Cultura e da Book Net, esta que foi a primeira livraria brasileira exclusivamente virtual, criada por Jack London. A Book Net já concedia descontos. Chegou a ter 50 mil clientes quando foi comprada em 1998 pela GP Investments (de Jorge. Paulo. Lemann e companhia). Em 03/11/1999 o nome foi alterado para Submarino que, seis meses depois, já alcançava os 500 mil clientes, e manteve a política de dar descontos.

Mas, a prática dos descontos em livrarias físicas no Brasil deve ser creditada à Fnac. No ano 2000, a Fnac, de origem francesa, comprou o Ática Shopping Cultural e abriu duas outras lojas em São Paulo. Como estratégia para atrair clientes para as lojas instituiu o “Preço Verde”, um selo adesivo que era colado nos livros, CDs e DVDs, e que dava 20% de desconto nos primeiros 30 dias de lançamento desses produtos em loja. O que era, e ainda é, proibido na França. As outras livrarias, principalmente as maiores, optaram por acompanhar a Fnac nessa estratégia, e começaram a dar descontos também. Para preservarem sua margem, começaram a exigir mais descontos das editoras que, na sua grande maioria, cedeu.

Voltando a falar de obsessão, qual será a da Amazon?

Três dos autores indicados na bibliografia abaixo, Brandt, Krames e Stone, mencionam o fato a seguir envolvendo Jeff Bezos. Transcrevo o relato de Brandt, por ser o mais detalhado:
Em 22.09.1994, dois meses depois de adquirir a Amazon e dez meses antes de lançar a empresa, Jeff Bezos decidiu aprender a vender livros. Fez, então, um curso sobre como montar uma livraria, patrocinado pela Associação dos Livreiros Americanos. Cerca de 40 aspirantes a donos de livrarias, de jovens estreantes a casais aposentados em busca de uma nova carreira, participaram do curso de quatro dias no Benson Hotel, em Portland. Eles assistiram a palestras que abordavam temas como operações financeiras em livrarias, atendimento ao cliente e gerenciamento de estoques. Um dos instrutores era Richard Howorth, dono da Square Books, de Oxford, Mississippi.
Howorth é um fanático por atendimento ao cliente. Para enfatizar a importância do atendimento, ele contou a história de seu mais eloquente exemplo de cuidado com o cliente.
Um gerente da loja subiu ao escritório de Howorth para informá-lo que uma cliente queria fazer uma reclamação. Howorth voou para baixo a fim de saber qual era o problema. A cliente, furiosa, contou que havia estacionado o carro na frente do estabelecimento, e que, de alguma forma, havia caído sujeira dos vasos de plantas da sacada em cima do carro dela. Howorth então se ofereceu para lavar o veículo. Eles entraram no carro e foram a um lava-rápido de posto de gasolina, mas ele estava fechado para reforma. Ela ficou ainda mais brava. Howorth então sugeriu que fossem à casa dele. Lá ele pegou balde, sabão, mangueira e lavou o carro.
Quando voltaram para a loja, a atitude da cliente mudou, e ela voltou em seguida à loja, na mesma tarde, e comprou uma pilha de livros.
Mais trade, Bezos disse a um executivo da Associação dos Livreiros Americanos que havia se impressionado com a história e estava determinado a fazer do atendimento ao cliente ´a pedra de alicerce da Amazon´ ”. Brandt, pp. 9-10.

Peter Drucker em 1954 conceituou que a finalidade de uma empresa, qualquer empresa, é “criar um cliente”. Nos dias de hoje também é necessário atendê-lo e fidelizá-lo.
Empresas vencedoras já aprenderam esse ensinamento:
A transição da IBM se baseava em uma ideia central: uma paixão obsessiva pelo cliente”. Collins citando o CEO Louis Gerstner, contratado para recuperar a IBM em 1993, p. 135.
Em 2003, decidiríamos fazer do atendimento ao cliente o foco da empresa”. Hsieh, CEO da Zappos, p. 130.
A experiência do cliente é o próximo campo de batalha competitivo. É onde os negócios serão ganhos ou perdidos”. Tom Knighton, VP da Forum Corp, in Fast Company (org), p. 42
As empresas como as conhecemos, estão em vias de extinção. Elas não vendem mais produtos, vendem experiências. Já não mais existem concorrentes, apenas melhores soluções e mais escolhas, que podem ser reunidas de maneiras mais variadas.” Peter Drucker, citado por Edersheim, p. 32

Jeff Bezos é o mais apropriado para dizer qual é a obsessão da Amazon:
Somos genuinamente focados no consumidor, somos genuinamente voltados para o longo prazo e gostamos genuinamente de inventar. A maioria das empresas (...) se concentram na concorrência, não no cliente.” Stone, p. 20
Não estou preocupado com alguém que cobra 5% a menos. Estou preocupado com quem oferece melhor experiência”. Kotler, p. 181.
Mas, a frase definidora da estratégia de negócio da Amazon, é esta de Bezos, pronunciada no Commonwealth Club em 27.07.1998:
Sabemos que, se conseguirmos manter os nossos concorrentes focados em nós, enquanto colocamos o foco no cliente, no final vamos nos dar bem”. Brandt, p. 10.

Portanto, desconto é só o “boi de piranha” da Amazon. Se preferirem uma analogia mais filosófica, pode ser a da “Alegoria da Caverna”, de Platão.
Cliente que vem por preço, por preço vai embora, assim como a margem (de lucro). E no varejo, assim como no “Velho Oeste”, sempre existirá um “pistoleiro” mais rápido. Vantagens competitivas de longo prazo são:
1-atendimento ao cliente;
2-cultura da empresa;
3-treinamento e desenvolvimento de colaboradores.
Jack Welch também já disse que “... se você não possui vantagem competitiva, não entre na concorrência”. Rumelt, p. 67

E como é esse atendimento ao cliente da Amazon? Vou contar dois casos pessoais, como cliente e como fornecedor.
Compro muitos livros e em muitas livrarias, sejam elas físicas e/ou virtuais. Há algumas semanas precisei comprar dois livros infantis para meu filho, pedidos pela escola. Um deles era da Ática e o outro da Brinque-Book. Portanto, dois livros que, normalmente, não é comum estarem disponíveis para entrega imediata; somente por encomenda. Entrei direto no site da Amazon. Não fiquei pesquisando onde tinha menor preço. Depois fiquei me perguntando porque tinha feito assim. E a resposta é que, de alguma forma, já aprendi que a Amazon tem disponibilidade imediata.

Para o fornecedor, a Amazon criou e libera o acesso a um site exclusivo para cada um. Lá é possível acompanhar a venda, o estoque de cada livro entre um dia e um ano atrás, cadastrar produtos e atualizar informações sobre eles, pagamentos feitos etc. Com isso, por exemplo, é possível sugerir reposição de títulos com estoque zerado ou baixo. O pressuposto é de um trabalho em conjunto. Somente dois ou três clientes no mercado fornecem dados simples sobre a venda e estoque, com envio de dados por planilha excel, mas uma vez por semana ou mês.
Outro ponto chave, de grande diferenciação, é com relação à logística. A Amazon agenda recebimento na logística em dois ou três dias. Grandes concorrentes entre 10 e 20 dias.
Portanto, definitivamente, o diferencial competitivo da Amazon não é o preço.

A Amazon vai ter uma participação significativa no mercado do livro no Brasil? SIM.
Ao final de 2018 será o 1º ou 2º cliente de todas as editoras e distribuidores que fornecem diretamente para ela.
A Amazon vai pressionar as editoras? SIM.
Já fez isso com grandes e pequenas editoras. Em 2010 com a Macmillan, da qual chegou a retirar os e-books do site. Em 2014 com a Hachette. Para as negociações com as editoras menores chegou a ter nos USA, dentro da equipe de livros, um programa denominado “Projeto Gazelle”. Detalhes em Stone, p.263.

Mas, pressionar fornecedores, sejam eles grandes ou pequenos, não é exclusivo da Amazon. Todo grande varejista pressiona seus fornecedores para obter mais descontos, mais prazo, redução do custo de frete, rateio de mídia (VPC), bônus por compra, enxoval de abertura de loja etc, enfim, melhores condições financeiras e, assim, aumentar suas margens de lucro. É mais fácil isso do que olhar para sua própria operação e ver onde ela é ineficiente e corrigir. Acontece que, margem de lucro é finita. Portanto, cuide bem da sua. No Brasil, os grandes do varejo de livros, sejam de âmbito nacional ou regional, também pressionam as editoras, principalmente as menores, que têm que dar descontos muito acima do patamar normal de mercado ou seus livros não estarão nas prateleiras e sites. Logo, é bom acabar com essa dicotomia de “demônio X santo”, pois isso não vai ajudar a encontrar soluções para problemas reais.

Com esse cenário, é possível existir um mercado onde pequenas e medias livrarias e editoras possam coexistir com os grandes do varejo?
Neste momento, a maioria absoluta do mercado do livro, até grandes do varejo que eram contra no passado recente, veem o Projeto de Lei do Senado n. 49 de 2015, que institui a política nacional do livro e regulação de preço, como o “Salvador da Pátria” deste mercado. Esquecem, que já existe legislação que regulamenta qualquer atividade econômica. É a Lei n. 12.529 de 30/11/2011, que Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Segue o artigo:
Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados.
IV - exercer de forma abusiva posição dominante. 
§ 3o  As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 
XV - vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;
Não tenho registro de nenhuma ação de livraria, distribuidora ou associação de classe contra quem comercializa fora dos limites da legislação. Então, a pergunta é: por que a legislação nunca foi usada por quem se sente prejudicado?

Respondendo à pergunta se é possível coexistir num mercado onde a Amazon tenha elevada participação no mercado, a resposta é: SIM, é possível (post em breve). Mas, para isso, é necessário mudar o posicionamento das empresas, isto é, das pessoas que as gerenciam, pois, mesmo no negócio do livro, que demorou 545 anos para ter uma mudança significativa na sua comercialização, somente com o e-commerce em 1995, não é mais permitido ficar na inércia: “Essa propriedade da massa (resistência a uma mudança de movimento) ... Nos negócios, a inércia é a incapacidade ou falta de disposição de uma organização em se adaptar às novas circunstâncias”. Rumelt, p. 191

Para terminar, e com esperança, deixo a sugestão de Tony Hsieh, CEO da Zappos: “Eduque-se. Leia livros e aprenda com os outros que o fizeram antes”, p.92, e uma “escalação” de 13 livros. Aliás, quantos desses você já leu?

Bibliografia
AUN, Michael. É o Cliente que Importa: 34 dicas para garantir a satisfação dos clientes e o sucesso dos negócios. Rio de Janeiro, Sextante, 2012.
BRANDT, Richard L. Nos Bastidores da Amazon: o jeito Jeff Bezos de revolucionar mercados com apenas um clique. São Paulo, Saraiva, 2011.
COLLINS, Jim. Como as Gigantes Caem: e por que algumas empresas jamais desistem. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2010.
DRUCKER, Peter F. O Gestor Eficaz. Rio de Janeiro, LTC, 2011.
EDERSHEIM, Elizabeth Haas. A Essência de Peter Drucker: uma visão para o futuro. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2007.
FAST COMPANY (org.). Adapte-se ou Morra: e outras 54 lições dos principais pensadores do mundo dos negócios. Rio de Janeiro, Sextante, 2010.
HSIEH, Tony. Satisfação Garantida: no caminho do lucro e da paixão. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2010.
KAPLAN, Saul. Modelos de Negócios Imbatíveis: como sua empresa e você podem se manter relevantes em meio às mudanças. São Paulo, Saraiva, 2013.
KOTLER, Philip. Marketing de A a Z: 80 conceitos que todo profissional precisa saber. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2003.
KRAMES, Jeffrey A. A Cabeça de Peter Drucker. Rio de Janeiro, Sextante, 2010.
LEWIS, Robin e DART, Michael. As Novas Regras do Varejo: competindo no mercado mais difícil e desafiador do mundo. São Paulo, Figurati, 2014.
RUMELT, Richard. Estratégia Boa, Estratégia Ruim. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2011.
STONE, Brad. A Loja de Tudo: Jeff Bezos e a era da Amazon. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.

Sobre o autor:
As ideias expostas não representam as de quaisquer empresas ou instituições a que estou ou estive vinculado.

Publicado originalmente no Publishnews em 08/11/2017



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